A face de Jano na vigilância da pandemia covid-19: controlar ou cuidar?

Para além de poderem ajudar na missão de prevenir a transmissão da doença por covid-19, estas aplicações de telemóvel são também encaradas como meios promissores para sustentar a elaboração e implementação de políticas de saúde pública.

Jano, o Deus romano das mudanças e transições, foi concebido com uma face dupla, simbolizando o passado e o futuro, a entrada e a saída. Jano era o Deus dos inícios, das decisões e das escolhas. Tal qual a face de Jano, a pandemia covid-19 abriu portas para a expansão de actividades de vigilância e monitorização dos cidadãos em troca de saúde e segurança, individual e pública. Se, no passado, a globalização da vigilância e a recolha massiva de dados pessoais dos cidadãos ocorreu por via de práticas securitárias de combate ao terrorismo e à criminalidade, neste momento assiste-se à extensão desta tendência para o campo da saúde pública, a uma escala sem precedentes históricos.

De entre vários exemplos que ilustram o fenómeno social da expansão da vigilância em troca de “segurança”, destaca-se o caso de acções recentemente patrocinadas por vários governos em diferentes partes do mundo, que apelam à “colaboração activa” dos cidadãos na utilização de aplicações em telemóveis para apoiar as autoridades de saúde na missão de monitorizar e mitigar a pandemia covid-19. A ideia é que cada cidadão descarregue para o seu telemóvel, voluntariamente, uma aplicação que usa rastreamento digital para apoiar o processo de identificação de pessoas que possam ter estado em contacto com um indivíduo infectado.

Até agora, o método dominante de rastreamento das redes de contactos de uma pessoa infectada por covid-19 tem sido manual: agentes das autoridades de saúde entrevistam o/a paciente para identificar todas as pessoas com quem esteve em contacto nas 48 horas após o surgimento de sintomas. O rastreamento digital, por via das covid apps, promete mais celeridade, fiabilidade e eficácia na identificação de pessoas que possam ter estado em contacto com um indivíduo infectado. Para além de poderem ajudar na missão de prevenir a transmissão da doença por coronavírus 2019 (covid-19), estas aplicações de telemóvel são também encaradas como meios promissores para sustentar a elaboração e implementação de políticas de saúde pública, por via da recolha massiva de informação. Diversos stakeholders internacionais, entre os quais a Comissão Europeia, têm elogiado a Coreia do Sul e a Singapura como casos de sucesso na utilização deste tipo de tecnologias digitais.

O uso de covid apps representa apenas o levantar do véu da mobilização e operacionalização de meios tecnológicos sofisticados para responder a esta situação de emergência de saúde global. O recurso a megadados (Big Data) tem-se consolidado como uma estratégia cada vez mais premente nos processos de tomada de decisão. A geração de grandes quantidades de dados, não estruturados e provenientes de múltiplas fontes (por exemplo, dados comerciais ou dados extraídos de redes sociais), que podem ser cruzados com dados clínicos e epidemiológicos, tem sido dinamizada para apoiar a tomada de decisão em políticas de contenção e mitigação da covid-19.

As vozes críticas emergentes apontam para as implicações problemáticas das covid apps em termos de privacidade, protecção de dados e outros direitos civis. Mas confrontam-se com um dilema que não se configura fácil de solucionar: como proteger liberdades fundamentais e, simultaneamente, reconhecer e acautelar os potenciais benefícios em termos de saúde pública e segurança colectiva?

Estudos históricos e sociológicos recordam-nos que as pandemias, epidemias e surtos constituem momentos particularmente evidentes de cristalização das redes complexas de relações sociais e de poder, convertendo-as em problemas sociais ora identificáveis ora subsumidos, como desigualdades e vulnerabilidades, violência, estigmatização e marginalização.

Nestas situações, onde o medo e a incerteza podem induzir os cidadãos a concordar com o envolvimento em sistemas de vigilância, o uso de covid apps poderá tornar-se um elemento simbólico e material que dará azo à reprodução e consolidação de novas e velhas diferenças e desigualdades sociais. Os apelos à participação de todos os cidadãos na cedência dos seus dados pessoais para ajudar no combate à pandemia covid-19 têm por base um referencial normativo e moral de cidadão “responsável” e altruísta.

A este tipo-ideal de cidadão, construído pelo poder político, contrapõe-se o cidadão que não entra nesta teia de vigilância: seja porque resiste ou porque não dispõe de recursos para o fazer. Ao cidadão que aceita ser um agente individual de promoção de saúde pública e segurança tende a corresponder um determinado estatuto social, que entra em profundo contraste com outros indivíduos e populações excluídos desta vigilância participativa (French e Monahan, 2020) – dos “idosos” e “grupos de risco” aos “imigrantes” e “refugiados”.

De um ponto de vista da sociologia crítica, dir-se-ia que esta situação de emergência de saúde pública global abre portas para a normalização de medidas de vigilância intrusivas, que se tornam digeríveis e se naturalizam porque são encaradas como medidas de segurança para futuros novos contágios. Parafraseando David Lyon (2001), a vigilância existe num espectro entre o cuidado e o controlo. Encarando o futuro à luz das lições do passado, o pêndulo que se vislumbra é que o controlo se torne fonte de desigualdade e discriminação. A sociedade necessita de reforçar mecanismos democráticos de transparência e prestação de contas aos cidadãos que tornem claro que o cuidado é o bem comum a prevalecer, norteado pela redução do sofrimento, justiça e respeito mútuo. São estes os pilares que sustentam a confiança, a participação e a solidariedade da população.

Texto publicado no âmbito de parceria com a Associação Portuguesa de Sociologia

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