Dia 46: Contra o estereótipo da criada

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Mãe,

Hoje, depois de muitas semanas, voltou a B., em teoria a nossa empregada mas, na prática, uma das pessoas mais importantes na nossa vida, principalmente da vida dos meus filhos. É das pessoas mais trabalhadoras e dedicadas que conheço e a salvadora de uma grande parte da minha sanidade mental. É, também, uma das pessoas que melhor conhece a nossa verdade enquanto família. E, apesar de a conhecer, ainda não fugiu, o que me dá sempre um enorme alívio!

Falo dela porque acho que há um tabu gigante entre nós mulheres de falarmos sobre as pessoas que nos ajudam em casa. O tabu deve existir por alguma razão, já que são rápidos os julgamentos, associando-o imediatamente a “luxo” e “privilégio”. Mesmo nas redes sociais vejo muitas vezes as influencers a dizer “Uma pessoa que me ajuda, de vez em quando, umas horas”, como se fosse sinal de fraqueza, revelador de que não somos as mães/donas de casa/trabalhadoras perfeitas. Mas, o que me chateia não é o que pensam de mim, o que me irrita verdadeiramente é que, em última análise, estão a tornar menos digna a profissão de tantas mulheres (e homens? Não conheço nenhum, mas acredito que haja!).

É uma profissão pela qual tenho uma admiração gigante (até porque me faltam várias das competências necessária para a desempenhar bem e que adorava ter), como porque ao longo da minha vida vi como estas pessoas que entram em nossa casa se tornam verdadeiramente família. Além do mais, foi um dos empregos muitíssimo prejudicado durante esta pandemia, é uma actividade com pouca protecção social e, em muitos dos casos, fecharam-lhes as portas de um dia para o outro.

Nós, as mães, devemos estar-lhes profundamente gratas, porque é uma profissão que nos permite trabalhar, dentro ou fora de casa, é um braço direito nesta “empresa” que é a família, uma parte desta “aldeia” em que queremos criar os nossos filhos. São o seu colo quando não o podemos dar, a nossa ajuda nas refeições, nas roupas, no dia-a-dia. Sim, é claro que pode ser um luxo, mas na maior parte dos casos é uma escolha, que exige prescindir de outras coisas. Uma escolha que permite não ter de pagar uma creche ou um ATL, que permite a uma família poder dedicar mais tempo ao seu próprio negócio. Mãe, porquê este tabu todo? De onde é que vem? Sei que a empregada que a mãe tem a sorte de ter há quase 40 anos foi, e é, a minha segunda mãe. Avó a 100% para os meus filhos.

Diga-me:sempre foi arriscado falar sobre isto?


Querida Ana,

Há estigmas que vêm do passado e se perpetuam, sacrificando ainda por cima o elo mais fraco da cadeia, aquele que alegadamente se pretendia defender. Liga a televisão numa qualquer telenovela e vais ver uma empregada fardada a rigor a preparar o pequeno-almoço de uma família rica, o sumo de laranja acabado de espremer e um bolo na mesa, quieta e calada de mãos postas, enquanto uns supostos betos mal educados, se sentam sem a cumprimentar e ordenam mais torradas ou uns ovos mexidos. Pronto, aí tens, em pleno século XXI, numa novela cheia de iPads e iPhones, o estereótipo da criada. Dessa herança ficou também a ideia de uma inclusão artificial na família, snob e paternalista, como se quando escreves que é a tua segunda mãe e avó dos teus filhos, estivesses a encenar uma cena sem correspondência com a realidade. Que, sabemos bem, é mentira.

E este complexo social — absurdo porque, feitas as contas, é um esforço para o orçamento familiar criar um posto de trabalho! —, acaba no diminuir o valor social de uma profissão extraordinária. Podemos elogiar a professora, a educadora, a auxiliar da escola, louvar o restaurante de take away nas páginas das redes sociais, mas cai o Carmo e a Trindade se dissermos que a empregada adormeceu o nosso filho, cozinhou um fantástico jantar ou ouviu o nosso desabafo e nos consolou.

O que nos leva a entender melhor o lado B desta questão, de que também falas. As mulheres tendem a esconder este apoio fundamental, porque temem ser julgadas como piores mães, piores donas de casa, piores cozinheiras, tudo atributos da fada do lar que supostamente deviam ser. A tua carta é um passo corajoso, que faz justiça a quem trabalha em nossas casas, e uma autorização explícita a que as mães dêem graças pela ajuda que conseguem ter, em lugar de receberem o louvor pelas tarefas que outras pessoas cumprem.

Cá por mim, sempre disse à minha mãe e sogra, que em tendo de escolher entre entrar em conflito com elas ou com a F., seria sempre com elas que cortaria relações! Deve ser por isso que ela tem estado ao meu lado há quase 40 anos, desde que eu e ela não passávamos de miúdas, e tu de um projecto.

Beijinhos,


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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