“Não havia ninguém lá” — Yanomami podem ter o mesmo destino do povo de Macunaíma

Além da ameaça de violência física direta, tem aumentado a presença dos garimpeiros na TI Yanomami, o que pode levar a contaminação com o coronavírus, comprometendo a sobrevivência da etnia.

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Houve um grande momento de silêncio às margens do rio Uraricoera quando Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade, nasceu no fundo do mato-virgem. Foi ali que a índia tapanhumas deu luz ao herói marioandradiano. Ele “era preto retinto e filho do medo da noite” — narra o autor de Macunaíma.

Em 2020, o silêncio do rio Uraricoera dá lugar às maquinarias do garimpo ilegal localizado em suas margens. Fotos aéreas feitas na última sexta-feira (18/04) mostram atividades de garimpeiros em vários pontos da Terra Indígena (TI) Yanomami, no estado de Roraima. A região abrange cerca de 9,6 milhões de hectares na parte brasileira e é morada para mais de 26 mil indígenas dos povos Yanomami e Ye'kwana, espalhados por 320 aldeias.

Rica em depósitos de ouro, a Terra Indígena (TI) Yanomami não atrai apenas os regatões do ouro, mas sobretudo os regatões do sagrado. A área representa o maior território indígena coberto por floresta do mundo e, nos últimos três meses, registrou um aumento sucessivo das atividades do garimpo ilegal e de missões religiosas. O estímulo vem de coordenadas discursivas de membros do Poder Executivo, que facilitam a ação de ambos os grupos em TIs: seja pela nomeação de Ricardo Dias, ex-membro da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) durante dez anos, para a coordenadoria de indígenas isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), ou pela assinatura da regulamentação do garimpo em TIs pelo presidente Jair Bolsonaro (05/02).

Até o momento, as tentativas do governo têm sido freadas pelo Congresso. O Projeto de Lei 191 prevê a regulamentação da mineração, da exploração de hidrocarbonetos e do aproveitamento energético dos rios dentro das terras indígenas.

As atuais incursões de garimpeiros e missionários não são novidade para os povos Yanomami e Ye’kwana. Na década de 80, eles tiveram seus territórios invadidos por cerca de 40 mil garimpeiros que deixaram no decurso inapagáveis rastros de destruição ambiental e humana. Na aldeia Haximu, um grupo de garimpeiros assassinou 16 Yanomami no início dos anos 90, sem poupar sequer as crianças. A presença dos missionários evangélicos na área do Mucajaí data da década de 60, seguindo das missões católicas Catrimani, dos italianos e dos Salesianos no Amazonas na região perto do pico da neblina. Dessa forma, a TI Yanomami torna-se no presente o novo eldorado de regatões, onde ouro e almas trazem “galardões” no mundo que virá depois da pandemia de covid-19.

No início deste mês, índios Yanomami relataram aumento na atividade do garimpo ilegal, resultante da baixa presença de agentes do Estado em campo por conta da crise. Não obstante, a escassez de assistência na região deteriorou-se com o fechamento, entre 2015 e 2016, das três Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs) voltadas a índios de recente contato e isolados que a Funai mantinha dentro da TI Yanomami. O fechamento abriu espaço para o assassinato de dois indígenas isolados Moxihatëtëa por garimpeiros na região da Serra da Estrutura, no interior da terra indígena, em julho de 2018.

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Os povos Yanomami e Ye’kwana vêm denunciando insistentemente a presença do garimpo dentro de suas terras, diz Luis Ventura, membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no estado de Roraima. “E o Estado é conhecedor disso. O cenário atual, com a pandemia de covid-19, torna ainda muito mais preocupante a situação. É dever e responsabilidade do Governo Federal extremar as medidas de fiscalização e proteção territorial, reabrir, estruturar e fazer funcionar as Bases de Proteção, retirar os invasores e proteger a vida e a saúde dos povos indígenas”, ratifica Ventura.

A União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) têm descumprido deliberadamente uma decisão judicial que as obriga a reinstalar as BAPEs na TI Yanomami. Sobretudo durante a pandemia, essa postura tem agravado o nível de insegurança na região. A omissão da União com a determinação de medidas de fiscalização e proteção territorial pode ter sido uma brecha para o provável assassinato dos indígenas isolados Moxihatëtëa.

O cronograma de reabertura das BAPEs apresentado pela Funai em agosto de 2019 previa o restabelecimento das bases em três etapas, uma para cada base, com prazos que remontam a agosto de 2019 e vão até 2021.

O projeto envolve a aquisição de materiais, o combate ao garimpo, o apoio de forças de segurança e a construção de cada BAPE. A primeira, BAPE Demarcação, funcionava mesmo sem o acabamento nas obras. Em novembro de 2019, a Funai já operava contra o garimpo ilegal, com apoio do exército, incluindo a instalação de barreiras no rio Mucajaí.

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Segundo o MPF, em março de 2020, antes da pandemia, a BAPE Korekorema dependia da conclusão de processos licitatórios para sua instalação. Para a instalação da terceira, de nome Serra da Estrutura, a Funai disse não ter disponibilidade orçamentária. Ainda de acordo com o Ministério Público, o processo de reinstalação das bases não deveria ser a única medida para combater a invasão de terras. A União deveria ter um plano de contingência para impedir o garimpo criminoso. Procurada na coordenação regional de Roraima, a Funai não confirmou se a base Korekorema já teria sido aberta.

Em 2017, o Ministério Público Federal de Roraima (MPF-RR) já havia alertado para a ameaça de genocídio do povo isolado Moxihatëtëa e moveu uma Ação Civil Pública, com pedido de liminar contra a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o estado de Roraima, a fim de que fossem “tomadas as medidas necessárias ao pronto restabelecimento das atividades permanentes nas Bases de Proteção Etnoambiental, […] com fornecimento de recursos materiais e humanos necessários para fiscalizar e inibir a ação de garimpeiros nas comunidades, bem como garantir o bem-estar da população local e a preservação dos recursos naturais das terras indígenas”, segundo dados do MPF.

A ameaça das incursões atuais, em plena pandemia, surpreende pela audácia. Porém, mais ainda pelo iminente perigo à saúde dos povos indígenas. Outro fato preocupante é o aumento no número de garimpeiros em decorrência das medidas de isolamento e restrições econômicas motivadas pela pandemia, que fazem mais pessoas recorrerem ao trabalho nos garimpos para lidar com o desemprego. A previsão é de que a atividade ilegal se intensifique ainda mais nas TIs por conta do impacto econômico do vírus nas cidades-polo.

Além da ameaça de violência física direta, a ausência das Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs) tem aumentado a presença dos garimpeiros na TI Yanomami, o que pode levar a contaminação com o coronavírus, comprometendo a sobrevivência da etnia que, além de apresentar um histórico de baixa imunidade contra doenças ocidentais, se encontra sem assistência médica adequada para seu tratamento.

“A gente está muito preocupado com essa doença chegar nas nossas aldeias. Espero que não aconteça isso, mas está muito perto de nós, em Roraima. Temos problemas muito sérios com os invasores, garimpeiros, entrando todo os dias na TI Yanomami. Eles vão transmitir a doença para muitos de nós. É o grande fator de transmissão. Temos muito medo do que pode acontecer hoje, amanhã ou depois. Estamos muito vulneráveis”, afirma Dário Yawarioma, filho do lider Yanomami Davi Kopenawa e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY).

Na narrativa de Macunaíma, a violência sofrida pelo espaço mítico/narrativo chama a atenção. Afinal, o que faz a personagem Macunaíma sair de sua cultura é o roubo do amuleto sagrado Muiraquitã por uma personagem que simboliza a exploração da floresta, o regatão Venceslau Pietro Pietra, que vai para São Paulo gozar dos auspícios do talismã indígena.

Depois de muitas idas e vindas, a personagem Macunaíma recupera o artefato sagrado e o leva de volta para o seio da floresta. Sua experiência ao retornar à floresta, mesmo prevalecendo os elementos fantásticos da narrativa, falam de um espaço não reconhecível pela personagem. Esse espaço é impactado pela ação predatória, por ser agora penetrável por outras culturas que transformam o herói ao passo em que destrói seu espaço e populações nativas: “Não havia mais ninguém lá. Dera tangolomângolo na tribo Tapanhumas e os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá. Aqueles lugares, aqueles campos furos puxadouros arrastadouros meios-barrancos, aqueles matos misteriosos, tudo era a solidão do deserto. Um silêncio imenso dormia à beira-rio do Uraricoera” (Macunáima, p. 221).

A destruição ganha no espaço ficcional o estatuto de significação trágica do genocídio indígena em sentido restrito e mais amplo de toda natureza constituída das interações entre humanos e não-humanos no contexto na produção ficcional. Só restou o silêncio, da desolação e do medo. A questão ecológica, portanto, manifesta-se não como um dado na superfície textual de uma tragédia física, mas por meio do encerramento fabular que afirma não haver espaço para o povo de Macunaíma e a sua própria existência enquanto um ser culturalmente diverso. A sua partida para as estrelas é um indício de seu deslocamento no mundo. Desse modo, não há mais um herói para defender a floresta, não há mais um povo a ser defendido. O que sobra é somente a história, a tragédia, a lenda, tão frágil como a condição atual da floresta amazônica. Nossa preocupação é que o mesmo suceda aos povos Yanomami e Ye’kwana.

Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, professor do Departamento de Línguas Modernas e Linguística da Universidade Estadual da Florida e realizador do documentário Beyond Fordlândia

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