Realidade à distância ou distanciados da realidade: está o Ensino Artístico Especializado onde o queremos?

Se não é uma pandemia a forçar-nos a repensar os nossos conteúdos programáticos, será o quê, então? Esta poderia bem ser a oportunidade perfeita para, por uma vez, poder pensar-se em fazer aquilo que tantas vezes não cabe nas nossas aulas semanais: desenvolver o ouvido musical, a memória auditiva, a criatividade, a contextualização do repertório em estudo.

Passada esta primeira semana no modelo de Ensino à Distância (E@D), balizam-se os sucessos, mas também os problemas. Parece-me imperativo louvar todos os agentes educativos que muito se têm colectivamente esforçado para encontrar uma resposta adequada à necessidade de continuar a promover a aprendizagem das nossas crianças. No entanto, não posso deixar de relevar que parecemos estar a embarcar num certo histerismo, provavelmente decorrente da necessidade de justificar socialmente o salário de um professor.

Há, aliás, subsistemas de ensino onde essa parece ser precisamente a tónica predominante, como por exemplo no Ensino Artístico Especializado, de que aqui me disponho a falar.

Nas orientações fornecidas pelo Ministério da Educação até agora, não parece ter existido a preocupação de pensar, de forma mais concreta e específica, nas dificuldades acrescidas que este subsistema enfrenta à luz deste modelo, experimental para todos. Não é isso que me suscita espanto, tanto que até se afigura como uma oportunidade para, por uma vez, ser o próprio Ensino Artístico Especializado a recomendar o caminho mediante um conhecimento mais aprofundado das matérias em apreço. O que a mim me parece espantoso é que os Conservatórios e Academias não estejam a aproveitar essa oportunidade.

Sabe-se que a Aeep já se ocupou de instruir as escolas suas associadas, divulgando informações que terá obtido directamente com o ME (segundo as informações prestadas). A minha pergunta é, portanto, que informações específicas para o EAE foram então prestadas pelo ME? Importa perguntá-lo, pois se analisarmos os planos de E@D disponíveis nos sites dos próprios conservatórios, verificamos que existem substanciais diferenças na forma como estas escolas estão a implementar o modelo de ensino à distância. Não que se deva uniformizar ou padronizar, mas perante uma situação que compromete um dos alicerces do que é o EAE – o contacto presencial com os alunos – importava porventura oferecer uma resposta concertada.

Dirão que o contacto presencial é um alicerce de todo o ensino. Não o questiono, de forma alguma, mas no EAE esse contacto adquire contornos substancialmente diferentes, tendo em conta que falamos de um ensino essencialmente prático. Já aqui foi dito que há aspectos simplesmente impossíveis de adaptar para este modelo no EAE: seja corrigir pormenores técnicos e de postura que influem decisivamente na execução artística, seja desenvolver recursos que só se conquistam em conjunto, ou seja ainda desenvolver as competências performativas absolutamente essenciais tanto na Dança como na Música, há aspectos que simplesmente não vamos conseguir transportar e adaptar para este modelo. E ainda bem. Não haveria, então, sequer que tentá-lo.

Falando especificamente da área da Música, a que melhor domino, não existe nenhum software que, mesmo nas melhores condições, consiga oferecer uma audição fiel daquilo que o aluno está a executar ao seu instrumento, numa aula dita síncrona: o delay que impede a colaboração natural expectável e imprescindível, a distorção do som, a velocidade de transmissão que suprime uma vasta quantidade da informação sonora produzida...há que enfrentar a realidade: não é possível conseguir-se uma escuta fidedigna. Isto é, no entanto, contornável, no que às aulas individuais de Instrumento diz respeito: basta para isso solicitar aos alunos o envio prévio duma gravação das obras em estudo, o tal chamado momento assíncrono, que depois mediante um planeamento eficaz, permite que no momento síncrono, os aspectos a trabalhar assim o sejam, com razoável eficácia. Mas levanta-se outro problema: e os instrumentos? Tal como dirão os colegas de Dança que nem todos os pavimentos possibilitarão uma correcta abordagem ao seria uma aula, também muitos dos alunos de Música não têm instrumentos adequados em casa, ainda não os sabem manusear com autonomia ou não os têm de todo. Faz então sentido pensar-se num modelo de adaptação que não comporte um ajustamento nos conteúdos programáticos? Certamente que não. E no entanto, ainda não vi documento nenhum que assim o previsse.

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Se não é uma pandemia a forçar-nos a repensar os nossos conteúdos programáticos, será o quê, então? Esta poderia bem ser a oportunidade perfeita para, por uma vez, poder pensar-se em fazer aquilo que tantas vezes não cabe nas nossas aulas semanais: desenvolver o ouvido musical, a memória auditiva, a criatividade, a contextualização do repertório em estudo. Mas não, os conservatórios parecem estar focados em provar que também assim se consegue ensinar um instrumento a uma criança. Talvez não Música, mas um instrumento. E isto já não é novo, também assim o fizemos quando nos disseram que iríamos ter de diminuir a carga lectiva semanal das aulas de Instrumento. E nestes tempos curiosos, há conservatórios que parecem mais preocupados em reunir evidências de que os alunos estão a receber aulas, saturando os professores de relatórios e outras burocracias incipientes, do que se os alunos estão a realmente aprender alguma coisa com elas.

Mas há situações que o tornam ainda mais nítido: tanto na Dança como na Música, se o currículo é iminentemente prático, há algumas disciplinas que são especificamente de conjunto, e que portanto simplesmente não são passíveis de tal adaptação. A situação mais paradigmática no que à Música diz respeito reporta à disciplina de Classe de Conjunto, normalmente Coro ou Orquestra: simplesmente não é possível juntar 30 ou 40 crianças numa videochamada e conseguir que toquem/cantem de forma síncrona. E aqui se assinala uma diferença notável: enquanto que há conservatórios que optaram por assumir isto e dar autonomia aos docentes para encontrarem soluções mais úteis e eficazes, muitos não.

Quando falamos na avaliação, então aí entramos no reino das impossibilidades mais absurdas. Como concluir cursos de natureza prática, se retirarmos da avaliação essa mesma componente? Como realizar provas de acesso aos novos cursos, se estas consistem num vasto aglomerado de crianças (às vezes, de centenas) a inclusivamente partilhar instrumentos e espaços confinados? Como salvaguardar o acesso ao ensino superior, se este também recai fortemente sobre uma prova de natureza prática e presencial?

Até agora, estas questões têm sido empurradas com a barriga pelas escolas, que não podem fazer mais que esperar orientações vindas do ME. E assim, continuam-se a prolongar os prazos, a reagendar datas, sem saber muito bem se alguém já está a pensar nestas questões. Enquanto isso, as diferentes instituições que agregam estas escolas pedem orientações ao ME, que as remete para o Decreto-Lei n.º 14-G/2020, de 13 de Abril: não, não se fazem provas globais, isso já percebemos. Mas então sem isso, um aluno que conclua o Curso Básico e assim o pretenda, transita para o Curso Secundário apenas com a nota de frequência? Talvez sim, não sabemos. E os outros, os alunos externos que queiram concorrer à escola, tanto para o Curso Secundário como para o Curso Básico? Não sabemos. Os alunos em conclusão do Curso Secundário têm de fazer a Prova de Aptidão Artística? Sim, usando meios não presenciais. Quais? Não sabemos. Se falarmos em provas de acesso, tanto aos cursos ministrados conservatórios como no Ensino Superior, que compreendem sempre e impreterivelmente uma prova de execução instrumental, como se prepara escolas que estão fechadas para receber centenas de candidatos, numa altura em que não podemos ter grandes ajuntamentos de pessoas? Não sabemos.

O que sabemos é que a preparação dos alunos para qualquer uma destas provas exige tempo, tempo que se esvai enquanto continuamos à espera. E enquanto esperamos, em vez de mobilizar as diferentes vozes que nos compõem numa resposta harmoniosa, parecemos estar em corrida contra o tempo, a tentar provar que continuamos a trabalhar a todo o vapor. Porquê? Para que ninguém se lembre de remexer na ferida e ouse argumentar que somos dispensáveis em tempos de pandemia?

Haverá, certamente, exemplos muito mais favoráveis, mas é preocupante constatar que já há relatos de escolas a optar pelo layoff, outras a ameaçar fazê-lo. Há também relatos de escolas que, talvez crendo estarem também elas em estado de emergência, parecem ter suprimido os seus normais canais democráticos, fazendo aprovar decisões sem passar pelos grupos disciplinares, departamentos, conselho pedagógico; decisões que consistem, grosso modo, em impor uma sobrecarga de trabalho burocrático aos professores, já em dificuldades para conseguir gerir todo o disposto anteriormente. Se há meio ano se começava a discutir o direito a desligar, hoje aos professores exigimos que estejam permanentemente ligados. A produzir. 

Gostava mesmo que alguém me explicasse qual é a utilidade, nos tempos actuais, de colocar um professor a compilar listas bibliográficas extremamente detalhadas para consulta de ninguém ou a preencher um relatório semanal por aluno acerca do que fez na aula síncrona da semana. Talvez assim alguém se dê conta que em 45 minutos de aula, passamos 30 minutos à espera que o aluno estabilize a câmara, encontre as partituras, monte o instrumento, a cumprimentar os pais curiosos que entram, que a ligação web regresse, que ele volte a ligar o microfone.

E porquê, porque optam estas escolas por fazer isto? Não consta que o financiamento tenha sofrido alterações. Talvez o que motiva este tipo de actuação seja o mesmo que motiva outras decisões menos justas e acertadas noutros sectores: o medo. O medo de que com isto venha a austeridade e os nossos fundos sejam (novamente) os primeiros a ser cortados. Acredito genuinamente que é este o principal propulsor da actuação deste subsistema de ensino como todo, acredito que a possibilidade de vir a perder financiamento esteja a tolher as pessoas a ponto de não optar por este caminho: o de enfrentar assertivamente as limitações que as actuais circunstâncias nos impõem, de ousar assim quebrar a linha de produção que tínhamos montada e de fazer outra coisa. Se essa outra coisa for contribuir para reforçar a autonomia dos alunos, estimular a sua curiosidade e criatividade, desenvolver as suas competências colaborativas e fomentar uma atitude globalmente reflexiva, parece-me a mim que já não será coisa pouca.

Por todas as suas especificidades, o EAE merece que se pense mais longe do que apenas a simples replicação do modelo de aulas síncronas/assíncronas, palavreado muito adequado nos papéis, mas que deixa de fora o mais importante: se os alunos aprendem ou não, se assim se ensina ou não. De facto, quando falamos em como dar aulas à distância no EAE, esbarramos desde logo com vários problemas, só contornáveis se confiarmos aos diferentes agentes educativos o seu papel natural (em que os professores saberão melhor do que ninguém como e se os seus alunos aprendem, e devem por isso, ter autonomia para o orientar). É por isso que urge que o ME tome as rédeas da situação e faça o que, que se saiba, ainda não fez até hoje: que se disponha a concretizar uma auscultação plural ao sector, capaz de edificar respostas satisfatórias a estas perguntas e de resgatar aquilo que ainda nos resta e nos faz ensino artístico, antes de ousar ditar procedimentos.

É isto que, acredito, deveriam estar estas escolas a exigir. Ter voz, provinda da experiência e do profundo saber adquirido com ela, no processo decisório, de forma necessariamente transversal e democrática. E aí, o papel que se impõe será o de demonstrar peremptoriamente que o valor do nosso ensino não reside em indicadores de evidências, relatórios, contabilização de horas síncrona ou assincronamente despendidas. Restringir a nossa actividade a uma checklist de itens cumpridos com diligência, parece-me redutor; estes são os tempos para o Ensino Artístico Especializado se unir, professores e chefias, e apontar caminho naquilo que pode ser um ensino mais focado em formar, e menos em treinar.

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