Arábia Saudita elimina flagelação da lista de punições corporais

Supremo Tribunal propõe substituição das chicotadas e dos açoitamentos por penas de prisão, multas ou trabalho comunitário, e diz que a medida faz parte das “reformas sobre direitos humanos” de Mohammed Bin Salman. ONG exigem mais.

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Tribunal diz que a decisão se enquadra nas reformas de Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro saudita Reuters/POOL New

A Arábia Saudita vai acabar com a pena de flagelação como forma de punição, decretou o Supremo Tribunal num documento ao qual vários órgãos de comunicação social internacionais tiveram acesso. A mais alta instância judicial saudita quer que os juízes substituam as chicotadas e os açoitamentos por multas ou penas de prisão e diz que a medida faz parte das “reformas sobre direitos humanos” introduzidas pela Família Real. Amputações continuam, no entanto, a integrar a lista de punições corporais do país.

“O Supremo Tribunal decidiu suprimir em Abril a flagelação da lista de punições disponíveis para os juízes”, refere o documento, sem precisar, porém, a data concreta da entrada em vigor da medida. “Esta decisão é uma continuação das reformas introduzidas sob a direcção do rei Salman e a supervisão directa do príncipe herdeiro, Mohammed Bin Salman”, acrescenta.

A Justiça saudita não se baseia num sistema legislativo codificado, mas na interpretação que cada juiz faz da sharia, a lei islâmica. Nesse sentido, as punições para o mesmo tipo de crimes, diferem, em muitos casos, entre quem as decreta. Ainda assim, escreve a Reuters, as organizações de direitos humanos que monitorizam e documentam as questões sobre matéria penal na Arábia Saudita, concluem que a pena de flagelação é habitualmente decretada para crimes de assédio, relações extraconjugais ou embriaguez no espaço público. Mas não só.

De acordo com o documento, os juízes sauditas terão agora de escolher punições alternativas para aquele tipo de crimes, nomeadamente penas de prisão, multas ou trabalho comunitário, de forma a “atenderem aos padrões internacionais de direitos humanos sobre castigos corporais”.

Uma das sentenças mais mediáticas dos últimos anos a envolver uma pena de flagelação, teve como alvo o blogger e activista saudita Raif Badawi, hoje com 36 anos. 

Badawi fundou o site Free Saudi Liberals, onde escrevia sobre religião, secularismo e separação de poderes na Arábia Saudita, até ser detido em 2012. Foi considerado culpado por “insultos ao islão e à monarquia” e condenado, em 2014, a uma multa de cerca de 200 mil euros, dez anos de prisão e mil chicotadas.

No ano seguinte o Parlamento Europeu atribuiu-lhe o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, por se “bater pela liberdade de todos os sauditas” e “exprimir corajosamente as suas ideias”.

ONG querem mais

Apesar de reconheceram a importância da decisão do Supremo saudita, as organizações de direitos humanos dizem, no entanto, que a mesma peca por tardia e continua a ser insuficiente para converter a Arábia Saudita num país que respeita e promove os direitos fundamentais.

“Esta mudança é bem-vinda mas já devia ter acontecido há vários anos. Já não há nada que impeça que a Arábia Saudita reforme o seu sistema judicial injusto”, disse à Reuters Adam Coogle, da Human Rights Watch.

“Se o Governo saudita quiser ser sério e fazer uma reforma jurídica, devia começar por libertar todos os presos políticos e activistas de direitos humanos que estão há anos nas suas prisões. E também devia abolir a pena de morte, incluindo a execução de jovens”, reagiu Aliaa Abutayah, activista e opositora política, residente em Londres, em declarações à Al-Jazeera.

De fora desta actualização do quadro penal saudita, no que aos castigos corporais dizem respeito, ficam as amputações, normalmente aplicadas a delitos de roubo. A pena de morte, sob a forma de decapitação ou crucificação, entre outras, e habitualmente associada a homicídios ou crimes de terrorismo, também não sofre alterações.

O número de execuções na Arábia Saudita tem vindo, inclusivamente, a aumentar, situação que transmite sinais contraditórios às intenções de Mohammed Bin Salman – que é quem governa verdadeiramente o país – de reformar e modernizar a sociedade e a economia sauditas.

Segundo o relatório de 2019 da Amnistia Internacional sobre a aplicação da pena capital em todo o mundo, a Arábia Saudita registou o maior número de execuções num só ano – 184 –, em contraciclo com a tendência mundial de redução do emprego deste tipo de sentenças. 

A grande maioria dos condenados à morte em território saudita, refere a organização, cometeu assassínios ou crimes relacionados com drogas. Verificou-se, ainda assim, um aumento da aplicação da pena de morte como “arma política contra dissidentes”.

O assassínio brutal do jornalista saudita e crítico do regime, Jamal Khashoggi, em 2018, no consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia – foi estrangulado e desmembrado – levantou sérias suspeitas sobre o envolvimento do príncipe herdeiro, fez aumentar os alertas internacionais sobre a ampliação da repressão saudita e retirou crentes à tal abertura prometida por Mohammed Bin Salman.

O próprio timing do anúncio do fim da pena de flagelação causou indignação entre os críticos do príncipe herdeiro, uma vez que sucedeu às notícias sobre a morte do activista Abdullah al-Hamid, de 69 anos, que cumpria desde 2013 uma pena de prisão de 11 anos, por “incitamento à desordem” e “quebra de fidelidade” à monarquia.

De acordo com a fundação sueca The Right Livelihood Foundation, que o chegou a galardoar, al-Hamid morreu no hospital, depois de ter recebido “tratamento desumano” numa prisão de Riade. “Pagou o preço mais alto pelas suas convicções”, lamentou a fundação.

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