Arábia Saudita premeditou a morte de Jamal Khashoggi

Equipa da ONU - em que participou o especialista forense português Duarte Nuno Vieira - destaca o facto “inaceitável” de o corpo continuar desaparecido.

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Hatice Cengiz, noiva de Jamal Khashoggi, apresentou um livro sobre o jornalista assassinado em Istambul MURAD SEZER/Reuters

A relatora especial das Nações Unidas que investiga o caso da morte de Jamal Khashoggi não tem dúvidas sobre o ponto central: o jornalista saudita foi vítima de um assassínio brutal no consulado saudita em Istambul. O que Agnès Callamard e a sua equipa não sabem ainda com certeza é se o plano original era raptar Khashoggi, sendo o homicídio o último recurso, no caso de falhanço do rapto, ou se a primeira intenção era desde logo matar.

O comunicado da ONU com as afirmações da relatora, que esteve na Turquia entre 28 de Janeiro e 3 de Fevereiro,​ foi divulgado quando o diário norte-americano New York Times noticiou a transcrição de escutas dos serviços de espionagem norte-americanos em que o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, comentava com um alto responsável do regime que consideraria usar “uma bala” em Khashoggi se este não voltasse para a Arábia Saudita e acabasse com as críticas que vinha a fazer ao seu Governo.

As transcrições são, diz o jornal, a mais directa ligação entre o príncipe herdeiro e a morte de Khashoggi – até agora negada pela Arábia Saudita. Após várias versões, o Governo de Riad diz agora que Khashoggi foi morto por uma equipa que levou a cabo uma missão não autorizada. Riad argumenta que a ideia era levar Khashoggi para a Arábia Saudita e que ao não conseguirem, os operacionais acabaram por o matar. 

Limpar provas

A acompanhar a relatora na visita a Istambul esteve uma equipa que incluiu o especialista forense português Duarte Nuno Vieira, director da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (e que já participou em mais de 40 missões, a maioria com o relator especial da ONU sobre Tortura). Duarte Nuno Vieira falou com o PÚBLICO por telefone e sublinhou, a par da gravidade do crime, o facto “inaceitável” de não se saber onde está o corpo, se já foi reconhecido que houve uma morte.

Ecoando as palavras da relatora no comunicado, Duarte Nuno Vieira chama a atenção para os “condicionalismos” que as autoridades turcas enfrentaram, desde o momento da morte até ao acesso dos inspectores (13 dias até acederem ao consulado, 15 à residência do cônsul). Destaca ainda “intervenções da Arábia Saudita no sentido de limpar e eliminar evidências – houve pelo menos três intervenções neste sentido”, diz.

A relatora resume, no comunicado, os pontos-chave identificados até agora: “É muito claro que houve um grande planeamento e preparação após a visita inicial de Khashoggi a 28 de Setembro [ao consulado saudita em Istambul]: a criação e viagem de três equipas que levaram a cabo a operação, a presença de uma pessoa parecida com Khashoggi que foi vista a sair do consulado, a presença de um médico forense, a fuga dos membros das equipas e, claro, o desaparecimento do corpo, cuja localização é ainda desconhecida”.

Khashoggi não se considerava um dissidente: apoiava várias medidas das autoridades sauditas mas criticava outras. Era um homem que, de acordo com amigos e colegas, “adorava a Arábia Saudita”, nota a relatora da ONU. 

Agnès Callamard também expressa preocupação com os onze suspeitos sauditas que estão a ser julgados pelo crime no país, notando “a falta de informação pública sobre a sua identidade, sobre a transparência e justiça do processo, e a potencial aplicação da pena de morte”.

A investigação continua “com as autoridades turcas e outras nas próximas semanas”. A responsável da ONU – que apresentará um relatório final em Junho – nota que Khashoggi “entrou no consulado do Reino da Arábia Saudita [em Istambul], por marcação, para obter documentos necessários para casar com a sua noiva”, Hatice Cengiz. “A realidade amarga do seu assassínio ainda é mais comovente por causa do objectivo feliz com que entrou no consulado.”

A noiva esperou horas e horas por ele à porta. Durante vários dias, a Arábia Saudita disse que ele tinha saído pelo consulado por uma porta traseira.

Esta sexta-feira, Cengiz apresentou um livro sobre Khashoggi em Istambul.”É importante para nós que o corpo seja encontrado”, disse, “que possamos ter um local onde os seus entes queridos possam rezar”.

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