Salman deu todo o poder a MBS, mas teve que "acordar"

O rei saudita foi mantido na ignorância da crise aberta pelo "caso Khashoggi". Tem 82 anos e passou a governação ao seu filho favorito, MBS. A indignação ocidental e os apelos para que controle MBS obrigou-o a intervir.

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O rei Salman, de 82 anos Reuters

As consequências do desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi poderão ser tão graves que o rei Salman sentiu-se obrigado a intervir, de acordo com cinco fontes próximas da família real saudita.

Na quinta-feira, o rei enviou o seu assistente mais próximo, o príncipe Khaled al-Faisal, governador de Meca, a Istambul (Turquia) numa tentativa de controlar a crise.

Os líderes mundiais exigiram uma explicação. E na corte surgiu a preocupação de que o filho do rei, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MBS), a quem o rei delegou bastante poder, estivesse em dificuldade para controlar a crise, aumentou, disseram as fontes.

Durante a visita do príncipe Khaled, a Turquia e a Arábia Saudita concordaram criar um grupo de trabalho conjunto para investigar o desaparecimento de Khashoggi. Depois, o rei ordenou que o procurador público abrisse um inquérito com base no que o grupo descobrisse.

“A escolha de Khaled, uma figura muito influente da família real, é reveladora, uma vez que Khaled é o conselheiro pessoal do rei, o seu braço direito, e tem ligações próximas e é amigo do Presidente turco Erdogan”, disse uma fonte saudita com ligações ao Governo.

Desde o encontro entre o príncipe Khaled e Erdogan, o rei Salman tem insistido em ser ele a gerir a crise, de acordo com outra fonte, um empresário saudita que vive no estrangeiro, mas que é próximo da família real.

Representantes sauditas não responderam às perguntas da Reuters sobre o envolvimento do rei na gestão da crise. Um porta-voz do príncipe Khaled disse à Reuters para falar com representantes do Governo em Riad.

Khashoggi, residente nos Estados Unidos e principal crítico do príncipe MBS, desapareceu depois de entrar no consulado saudita em Istambul no dia 2 de Outubro. Fontes turcas disseram acreditar que o jornalista saudita foi assassinado no local e o corpo transportado, acusações que a Arábia Saudita negou veementemente. Esta sexta-feira, o rei saudita confirmou a morte do jornalista.

Inicialmente, o rei, que entregou a gestão diária da Arábia Saudita a MBS, desconhecia a dimensão da crise, segundo duas fonte que conhecem a corte saudita. Isto porque os colaboradores de Mohammed apenas mostram ao rei notícias elogiosas sobre o país nos canais televisivos sauditas, disseram as fontes.

À medida que a crise cresceu, a realidade mudou. “Mesmo que MBS quisesse esconder a crise do rei, não podia porque a notícia sobre o desaparecimento de Khashoggi deu em todos os canais árabes e sauditas, que o rei vê”, disse uma das cinco fontes.

“O rei começou a fazer perguntas sobre o assunto aos colaboradores e a MBS, que teve que lhe contar e pediu-lhe para intervir quando o caso de Khashoggi se tornou uma crise mundial”, disse a mesma fonte.

Desde que ascendeu ao trono, em Janeiro de 2015, o rei deu a MBS, o seu filho favorito, autoridade crescente para gerir a Arábia Saudita. Mas a mais recente intervenção do rei reflecte o desassossego crescente entre alguns membros da corte relativamente à capacidade de MBS para governar, disseram as cinco fontes.

O príncipe herdeiro, de 33 anos, implementou uma série de reformas sociais e económicas de grande impacte desde a ascensão do seu pai ao trono, incluindo o fim da proibição das mulheres conduzirem e a abertura de cinemas no reino conservador.

Mas também marginalizou elementos mais velhos da família real e agregou o controlo das agências de segurança e dos serviços secretos sauditas.

As suas reformas têm sido acompanhadas pela repressão aos dissidentes, o afastamento de importantes membros da família real e de empresários, com base em acusações de corrupção, e por uma guerra dispendiosa no Iémen.

O desaparecimento de Khashoggi manchou ainda mais a reputação do príncipe herdeiro e aprofundou as dúvidas entre aliados ocidentais e alguns sauditas sobre a sua capacidade de liderança.

“Mesmo que seja o seu filho favorito, o rei tem de ter como preocupação principal a sua sobrevivência e a da família real”, disse uma quarta fonte com ligações à corte. “Porque [os problemas] irão recair sobre eles todos.”

Erro de cálculo

A Arábia Saudita negou várias vezes ter qualquer tipo de envolvimento no desaparecimento de Khashoggi. Mas as fontes próximas da família real disseram que a reacção dos Estados Unidos, aliado há várias décadas, contribuiu para a intervenção do rei.

“Quando a situação ficou fora de controlo e houve agitação por parte dos Estados Unidos, MBS disse ao pai que existia um problema e que teriam de o enfrentar”, disse outra fonte próxima da corte.

O príncipe herdeiro e os seus colaboradores acreditaram inicialmente que a crise iria passar, mas calcularam mal as suas repercussões, disse a mesma fonte.

Governantes turcos deixaram claro que acreditam que Khashoggi foi assassinado dentro do consulado e duas fontes turcas disseram à Reuters que a polícia tem gravações áudio que corroboram essa afirmação.

Na terça-feira, o senador republicano dos Estados Unidos Lindsey Graham, um próximo do Presidente Donald Trump, acusou MBS de encomendar o assassínio de Khashoggi e disse que o príncipe é "um martelo pneumático" que está a prejudicar as relações com os EUA.

Na quinta-feira, Trump disse que presumia que Khashoggi estivesse morto, mas que ainda queria descobrir o que aconteceu exactamente. Quando questionado sobre quais seriam as consequências para a Arábia Saudita, Trump disse: “Bem, terão de ser muito severas. Quero dizer, isto é mau, muito mau. Mas veremos o que acontece.”

Trump disse anteriormente que provavelmente os responsáveis seriam assassinos por conta própria e descartou a hipótese de cancelar a venda de armas à Arábia Saudita, no valor de dezenas de milhares de milhões de dólares. Na terça-feira, Trump disse que tinha falado com MBS e que o príncipe herdeiro lhe disse não saber o que se passou no consulado.

O caso cria um dilema para os Estados Unidos, mas também para o Reino Unido e outros países ocidentais. A Arábia Saudita é o maior exportador de petróleo do mundo, gasta muito dinheiro em armamento ocidental e é um aliado para a contenção da influência do Irão no Médio Oriente. Mas como exemplo dos danos causados, muitos empresários e banqueiros importantes, incluindo a directora-geral do FMI, Christine Lagarde, o presidente e CEO da JP Morgan, Jamie Dimon, e o presidente da Ford, Bill Ford, desistiram de ir a uma importante conferência sobre investimento na Arábia Saudita na semana que vem.

Na quinta-feira, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Steven Mnuchin, também desistiu da conferência, tal como o ministro do Comércio britânico e ministros das Finanças francês e holandês. Fontes oficiais sauditas disseram que planeiam realizar a conferência, marcada para 23-25 de Outubro, apesar das desistências.

Nem a JP Morgan nem a Ford quiseram especificar os motivos da sua desistência e não disseram se as preocupações sobre o desaparecimento de Khashoggi foram um factor. Lagarde disse estar “horrorizada” com os relatos da imprensa sobre o desaparecimento de Khashoggi. Um porta-voz do FMI não disse qual a razão por que Lagarde adiou a sua visita ao Médio Oriente.

Tomar o controlo

Antes da intervenção do rei, as autoridades sauditas apresentavam um tom desafiador, ameaçando no domingo retaliar fortemente contra os Estados Unidos e outros países se estes impusessem sanções devido ao desaparecimento de Khashoggi. Um órgão de comunicação saudita disse que as consequências seriam a quebra na produção de petróleo saudita e um aumento acentuado nos preços do petróleo.

“Ameaças com as possíveis sanções ainda estavam a ser proferidas pelo príncipe herdeiro há 24 horas”, disse um empresário próximo da corte na segunda-feira. “O rei está agora a tratar do assunto pessoalmente… e o tom é extremamente diferente.”

O rei falou directamente com Erdogan e Trump nos últimos dias. Tanto o rei como o seu filho se reuniram com o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, quando este visitou Riad na terça-feira.

O rei Salman, de 82 anos, esteve durante décadas no círculo de poder da dinastia Al Saud, que há muito governa por consenso. Nas quatro décadas em que foi governador de Riad (a capital), tornou-se conhecido por ser rígido, punindo os príncipes que pisavam o risco.

É pouco claro se está disposto ou se quer recuperar esse papel nesta crise, dizem membros do palácio. Uma fonte com ligações à corte disse que o rei estava “fascinado” com MBS e que o iria proteger.

Ainda assim, o rei já teve que intervir noutros assuntos no passado.  

Este ano, adiou a entrada na bolsa da empresa de petróleo nacional Saudi Aramco, criação de MBS e um alicerce da sua reforma económica, disseram à Reuters em Agosto três fontes com ligações a membros do Governo. Fontes oficiais sauditas disseram que o Governo continua empenhado nestes planos.

E quando, no ano passado, MBS deu a ideia de que Riad apoiava o obscuro plano da Administração Trump para a paz no Médio Oriente, incluindo o reconhecimento norte-americano de Jerusalém como capital de Israel, o rei corrigiu-o publicamente reafirmando o compromisso de Riad em manter a identidade árabe e muçulmana da cidade.

Apesar destes momentos raros de resistência, várias fontes próximas da família real disseram que o rei Salman se tem desligado cada vez mais das decisões tomadas por MBS.

“Ele tem vivido numa bolha artificial”, disse uma das fontes.

Porém, ultimamente, os conselheiros do rei começaram a sentir-se frustrados e começaram a alertar o rei para os riscos de não haver controlo do poder do príncipe herdeiro.

“Os que estão à sua volta começaram a dizer-lhe para 'acordar' e ver o que está a acontecer à sua volta”, disse a fonte.

Tradução Ana Silva