“Recolham a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma”

Passados 46 anos do 25 de Abril, as cóleras já são outras e os vírus idem. Perigosos, ambos.

Quando a rádio transmitiu o primeiro comunicado, ainda os portugueses estavam, na sua grande maioria, a dormir. A voz era de Joaquim Furtado, às quatro e 20 da madrugada, mas as palavras que ele leu aos microfones do Rádio Clube Português, chamando a atenção para “a gravidade da hora que vivemos”, tinham outros autores: “Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.”

Talvez o comunicado tenha sido escrito antes de se saber a que horas iria ser lido, porque na verdade os portugueses não podiam recolher a suas casas, já lá estavam; e até com a máxima calma, porque dormiam. Exceptuavam-se, claro, os que por motivos profissionais àquela hora ainda perfaziam horários nocturnos – e esses sim, estariam desejosos de se recolher e dormir.

Mas os outros, à medida que o comunicado foi sendo repetido e ajustado ao desenvolvimento das operações militares, acabaram por fazer o contrário do que insistentemente se lhes pedia. “A população […] deverá recolher a suas casas, mantendo absoluta calma”, pedia-se às 5h15. Duas horas depois, às 7h30, apelava-se à “população que se mantenha calma e que recolha às suas residências”; e às 7h45 repetia-se o apelo, quase com a formulação inicial: “As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa para recolherem a suas casas, nas quais se devem manter com a máxima calma”. Mas às 8h45, por tal apelo se ter revelado pouco eficaz, o aviso era mais sério: “O Movimento das Forças Armadas verifica que a população civil não está a respeitar o apelo já efectuado várias vezes para se manter em casa. Muito embora o controlo das acções desencadeadas seja quase total […], pede-se mais uma vez à população para que permaneça nas suas casas, a fim de não pôr em perigo a sua própria integridade física.”

O aviso, que, como todos aqui citados, pode ser lido na íntegra no primeiro volume de Textos Históricos da Revolução (Diabril, 1976) era prudente. Mas a população ignorou-o, sem hesitar. E foi enchendo ruas e praças, passeando-se por entre fuzis, empoleirando-se em estátuas, árvores e tanques e fazendo do golpe uma festa. Na altura ninguém falava de vírus, porque o único que havia era benigno e chamava-se liberdade. Bastante contagioso, como se viu nessas longas horas iniciais, enquanto o ânimo e a poesia desses momentos ímpares não eram substituídos pela (bem menos poética) realidade.

Mas se ninguém se recorda de vírus nesses dias, a verdade é que acabava de ser registado em Portugal um primeiro caso de cólera, reacendendo uma ameaça que já surgira em Setembro de 1971 e acabou por ser debelada sem ter chegado a configurar uma epidemia. Foi no Algarve, no dia 24 de Abril de 1974, e outros se lhe seguiram, como registou num blogue Patrícia Moreno, licenciada em História (FCSH-UNL), em 2011, num artigo intitulado “Cólera em Portugal na década de 70 no século XX”. O primeiro caso foi em Tavira, mas em finais de Maio de 1974 houve outros, “nos distritos de Beja, Setúbal, Aveiro e Braga”. E assim continuou até Outubro desse ano, quando se extinguiu quase em simultâneo em todos os lugares onde aparecera.

Os jornais da época deram conta da evolução dos casos. O livro 1974, o ano que começou em Abril, de António Luís Marinho e Mário Carneiro (Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2014), reproduz alguns recortes do Diário de Notícias, que em Julho noticiava: “Desde há dois meses, 272 casos de cólera comprovados no continente registando-se seis mortes. Distritos mais atingidos: Lisboa (112), Porto (91) e Faro (49)”. Por sua vez, a Direcção-Geral de Saúde (DGS) relembrava à população “as regras de higiene individual, colectiva e alimentar” para evitar a cólera. No final do mês de Agosto, noticiava de novo o DN, havia já 250 casos confirmados. Número residual, ainda, para que se pudesse falar de surto epidémico. Entre os conselhos de higiene, este, que nos soa bem familiar agora: “Lavagem cuidadosa das mãos antes de comer e de preparar alimentos e depois de se utilizarem as instalações sanitárias.” Lá fora, nos EUA, demitia-se Nixon por causa do Watergate, enquanto por cá os chapéus-de-sol na praia deixavam de ser sujeitos a qualquer taxa. Em Setembro, a DGS distribuía garrafas com desinfectante contra a cólera “pelo país inteiro”. Até que, um mês depois, a ameaça silenciosamente se extinguiu.

Passados 46 anos do 25 de Abril, as cóleras já são outras e os vírus idem. Perigosos, ambos. Confinados que estamos, manda a prudência que as festas se façam em casa (os deputados lá resolverão a sua, se se entenderem, na casa que constitucionalmente é de todos). Quanto à liberdade, há-de resistir. Já passou por muito, coitada, mas não há-de ser desta que a matam.

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