Há muito que há solidão nas aldeias mas agora há também medo

Autarquias multiplicam redes de apoio para reduzir deslocações nas aldeias. Aqueles que podem cuidar dos terrenos fogem aos constrangimentos de ficarem encerrados em casa – mas não verem os netos é difícil. Espírito de solidariedade faz a diferença. “Não podendo estar juntos, não deixamos de estar unidos.”

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Ana Marques Maia

“Aqui nas aldeias do interior, costumamos brincar e dizer que já estamos habituados a passar o ano inteiro em isolamento.” Fernanda Esteves, presidente da Junta de Freguesia de Sortelha, conversa com uma serenidade que atenua e disfarça as preocupações dos últimos tempos. Há quatro semanas, a autarquia começou a pedir aos seus pouco mais de 400 residentes para limitar rigorosamente as deslocações. Para “as respostas em termos das necessidades imediatas”, apenas o minimercado e a padaria continuam com as portas abertas. De resto, a sueca no café depois do almoço ou as caricas pelo fim da tarde tiveram de ficar para depois. Um cenário que, eventualmente, podia agravar a solidão daqueles que vivem longe dos grandes centros do país, mas que, garante a comunidade, tem sido combatido “com muita entreajuda”.

“A vantagem de estar aqui em vez de na cidade é que posso ficar sozinho no meu terreno à vontade. E depois ainda há outra coisa importante: de vez em quando, temos alguma liberdade para sair porque o mais provável é não nos cruzarmos com ninguém na rua. Regra geral, as aldeias estão completamente desertas.” Por estes dias, aos 69 anos, Luís Paulo tenta “não passear muito”. A propriedade que tem “a caminho de Belmonte”, “a uns cinco quilómetros de casa”, transformou-se no destino quase exclusivo sempre que entra no carro. É uma viagem relativamente segura, até porque, conta ao PÚBLICO, “não faço nenhuma paragem desnecessária”. Fora isso, é comprar medicamentos na farmácia, “sempre com a máscara no rosto”, e pouco mais.

Por agora, as conversas com os vizinhos acontecem a partir dos quintais. “Eles ficam nos cantos deles e eu no meu. Temos gente aqui em Sortelha com mais de 80 anos. O medo faz com que muitos não arrisquem sair de casa por nada”, explica. “De vez em quando, dá para perceber o nível de ansiedade que isto trouxe. Aliás, acho que depois do vírus vamos ter a segunda doença, que é a psicológica. As pessoas vão sair de casa muito afectadas. Aí é capaz de ser ainda pior.”

“O medo é inescapável. Somos bombardeados com notícias todos os dias e, como é óbvio, as pessoas ficam mais tensas quando ouvem que os idosos são mais vulneráveis. Mas, enquanto não tivermos nenhum registo de casos confirmados aqui, conseguimos ficar mais ou menos sossegados”, frisa José da Conceição Lopes, presidente da Junta de Freguesia de Piódão, do concelho de Arganil. O autarca explica que, apesar de “esta situação ter, evidentemente, contornos muitos específicos”, os moradores da aldeia passarem a esmagadora maioria do tempo dentro de casa não é “algo a que estejam desabituados”. Para além disso, sublinha, o espírito de “solidariedade” tem sido fundamental para a comunidade responder aos desafios levantados pela crise sanitária. “Isto aqui é como uma família. Toda a gente conhece e ajuda toda a gente.”

Para já, avança o presidente, tem sido possível manter “alguma ordem”. Todos os dias, o padeiro continua a poder passar com a carrinha de porta em porta e, uma vez por semana, “o homem da fruta também faz a ronda”. Por outro lado, a Câmara de Arganil criou uma “linha de apoio” para as aldeias do município. “As pessoas podem contar com a nossa ajuda se, por algum motivo, precisarem de se deslocar à mercearia ou à farmácia e não conseguirem. Nós trazemos até casa os bens de que necessitam”, salienta.

“Para os mais velhos, acho que foi muito difícil perceberem e lidarem com a ideia de que não iam poder passar a Páscoa com a família. Nós tentámos fazer a substituição possível.” Adelino Antunes de Almeida passou o último fim-de-semana a “percorrer as aldeias” e a “bater a todas as portas” da União das Freguesias de Cerdeira e Moura da Serra. Para o autarca, mais importante ainda do que distribuir por todos os munícipes “dez máscaras protectoras e um frasquinho de gel desinfectante” foi “conversar um pouco com as pessoas e tentar perceber como é que estavam”. “Às vezes, o que elas mais querem é só alguém com quem falar.”

A Casa do Povo de Cerdeira e Moura da Serra tem ajudado “muitos utentes que passavam grande parte do seu tempo em centros de dia e estão agora a receber apoio domiciliário”. Pelo meio, assinala Bruno Pinto, da direcção do projecto, “já encontrámos situações complicadas de gerir”. “Temos vindo a confeccionar refeições para um senhor que costumava passar o dia no lar onde a esposa está a ser acompanhada”, exemplifica. “As visitas foram suspensas há pouco mais de um mês e, sobretudo nestas circunstâncias, nem sempre é fácil fazer frente às saudades.”

A tristeza de não verem os netos

As saudades também já deixam marcas em Tarouca. “Os nossos mais velhos ficam muito tristes por não conseguirem ver e brincar os netos”, observa José Damião Melo, vice-presidente da câmara. É através das videochamadas que “vão até casa dos filhos” e “encurtam distâncias”. “Sabemos que nada substitui os momentos que têm quando partilham o mesmo espaço com o resto da família, mas é muito importante e valioso terem algo para não se esquecerem da vida antes disto.”

De resto, o concelho de Viseu tenta viver com “o máximo de ‘normalidade’ dentro do nosso alcance”. “Muitas pessoas têm o seu pequeno jardim ou a sua agricultura doméstica aqui nas aldeias. Felizmente, nestes momentos, conseguem distrair-se um bocadinho.” Nas últimas semanas, o município também criou uma rede de entrega ao domicílio de bens alimentares de primeira necessidade para “aqueles que têm uma maior dificuldade de movimentação” – e por vezes, “até para os cãezinhos ou as galinhas trazemos alguma coisa”. “Os idosos ouviram com muita atenção as recomendações que lhes demos e agora até são os primeiros a fazer chamadas de atenção para os mais jovens”, reflecte José Damião Melo. “Aqui, sinto que devo mostrar o meu orgulho pela minha terra e por eles, porque estão a portar-se lindamente.”

Na freguesia de Sortelha, descreve Fernanda Esteves, as pessoas “já se organizaram” para a recolha dos seus medicamentos. “Elas passam os comprovativos das receitas ao nosso tesoureiro, que é o único taxista da aldeia, e ele vai lá buscá-los.” Perante a pandemia, a autarquia tem tentado multiplicar soluções para não desistir das medidas de apoio – e afugentar a solidão. “Como estamos numa zona pequenina, temos o contacto da maior parte dos habitantes. Às vezes, quando conversamos por telefone, eles falam-me do quão irreal este pesadelo parece e contam que mal podem esperar para podermos sair de casa novamente.” Nos dias menos bons, é esse desejo partilhado que traz algum conforto. “No fundo, lembramo-nos que, mesmo não podendo estar juntos, não deixamos de estar unidos.”

Texto editado por Ana Fernandes

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