A pensar no amanhã

Em Portugal, a hora tem sido de unidade nacional e esse é o melhor tributo e celebração que podemos prestar a Abril de 1974 neste ano conturbado de 2020. Na Europa, perante as previsíveis hesitações de uns e resistência de outros, poderá porventura ser o momento de fazer avançar a União Europeia apenas com os que desejem apostar no seu fortalecimento.

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Eram já muitos os sinais de que atravessaríamos tempos de incerteza crescente, perante o amontoar de desafios que na última década se acumularam no horizonte: das alterações climáticas à transição digital e o seu impacto no trabalho, das migrações ao desenvolvimento sustentável, passando pelo aumento das desigualdades, pela degradação do relacionamento internacional e da segurança, pelo confronto global entre modelos de capitalismo – grosso modo, o modelo protagonizado pela China e o modelo liberal , pelo declínio do Ocidente e da Europa e pelas insuficiências do multilateralismo. Tudo isto indiciava a necessidade de extensas e profundas mudanças, não mais para que ficasse tudo na mesma, como dizia Lampedusa, mas para que as transformações já em curso pudessem ser moldadas pela vontade colectiva mais do que condicionarem o nosso futuro.

Porém, a génese do surto de coronavírus que remonta aos finais de 2019, não nos inquietou por aí além. Mas ao ter-se transformado abruptamente numa pandemia global, obrigou a medidas drásticas e nunca vistas de confinamento à escala planetária, ao ritmo do anúncio avassalador de um número sempre crescente de infectados e de vítimas mortais. Vivemos tempos de absoluta excepcionalidade, marcados pela suspensão das rotinas e práticas sociais, pela forte redução da actividade produtiva e da vida económica, mas sem que, por isso, tivéssemos abdicado, e bem, da normalidade democrática.

Em Portugal, na linha da frente, têm estado, sem dúvida, os decisores políticos, representantes dos órgãos de soberania e dos eleitos autárquicos, sem cuja actuação o Estado teria colapsado; mobilizados, em modo de acção permanente, têm estado todos os profissionais da saúde, vasta categoria que neste caso abrange médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, cuidadores, bombeiros, farmacêuticos, protecção civil. Na dianteira estão também os professores que, sem apelo nem agravo, tiveram de se converter ao ensino online de um dia para o outro, quando as salas de aula se deslocalizaram para a casa dos alunos por esse país fora.

E muitos outros, tantas vezes invisíveis, são os que continuam a trabalhar para garantir a segurança e a ordem públicas, assegurar a disponibilidade dos bens essenciais e a prestação dos serviços básicos aos cidadãos – camionistas, caixeiros, trabalhadores vários, designadamente da recolha do lixo e da higiene urbana, só para referir alguns exemplos, sem esquecer os profissionais da comunicação social, empenhados em manter os cidadãos informados com notícias fidedignas e actualizadas, tanto mais imprescindíveis quanto o carácter excepcional destes tempos fomenta receios, temores e mesmo pânico, tantas vezes exponenciados pelo rumor, a desinformação e as falsas notícias.

E, outrossim, tem-se a nossa sociedade civil activado, como é seu timbre em situações de emergência, mantendo uma desejável proximidade às comunidades e acudindo às necessidades mais prementes dos grupos mais vulneráveis. A hora tem sido de unidade nacional e, só isso, vale muito e penso que é o melhor tributo e celebração que podemos prestar a Abril de 1974 neste ano conturbado de 2020.

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Estação do metro em Lisboa, 15 de Abril: a nossa sociedade civil tem-se activado, como é seu timbre em situações de emergência EPA/JOSE SENA GOULÃO

Posto isto, o choque emocional, cultural e civilizacional que esta pandemia possa ter causado, para além de todas as reflexões e cogitações que um confinamento de inusitada duração suscita, poderão traduzir-se a prazo numa consciência mais apurada e crítica do modelo de sociedade em que pretendemos viver, com a consequente alteração de expectativas, exigências e comportamentos. E esse poderá ser um resultado positivo deste sobressalto existencial. Mas há outrossim que começar a enfrentar a crise económica e social que se anuncia e cujos efeitos são já tangíveis, com a destruição de milhares de postos de trabalho e o correspondente aumento do desemprego, a diminuição dos recursos das famílias e da riqueza nacional.

Tem-se utilizado muito a metáfora da guerra para referir a luta contra o coronavírus; extrapolando-a, resulta que, vencida a batalha de saúde pública, teremos um país a reconstruir, sendo que a economia estará muito debilitada e a sociedade eventualmente desorientada e mais vulnerável, ou mesmo, até certo ponto, traumatizada. Temos de conseguir aproveitar este choque exógeno que ninguém esperava nem antecipou para sair mais fortes, mais decididos a proteger um modelo social mais inclusivo e determinados a enveredar por um paradigma de desenvolvimento mais sustentável. Isto aplica-se a Portugal, mas nesta batalha está a Europa toda e estão todos os continentes.

Num mundo tão interdependente como o nosso – e, se dúvidas houvesse sobre a nossa aldeia global, bastaria pensar no trágico exemplo do coronavírus que mostra bem como um surto num remoto ponto do globo se pode transformar subitamente numa pandemia à escala planetária –, ou reforçamos a cooperação e a solidariedade mundiais ou será a espécie humana que estará em risco; ou acordamos num plano comum de paz e desenvolvimento ou não haverá vencedores mas apenas vencidos; ou restabelecemos a confiança mútua e coordenamos acções conjuntas e iniciativas em rede no seio dos fora de concertação internacional ou estaremos condenados a um inexorável declínio.

Para os países do velho continente, é a hora da Europa. Para a Europa, é a hora da defesa do multilateralismo, da democracia e de redescoberta do humanismo. Mas, para todos, creio, é claro que esta é a hora de reconhecer o papel insubstituível da confiança dos cidadãos no Estado e das suas funções essenciais enquanto garante da protecção dos cidadãos e da coesão social e no âmbito da afirmação da independência e soberania nacionais. Parece-me claro que a hiper-globalização tem os dias contados, mas também não será o regresso a um localismo serôdio – ou pior, a nacionalismos de má memória – que permitirá ultrapassar a monumental crise que se avizinha.

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Itália, um dos países mais afectados pela pandemia: não podemos deixar que um vírus mate a Europa e nos arraste consigo EPA/ANGELO CARCON

Os próximos tempos serão de uma enorme exigência e dificuldade, num cenário marcado por uma recessão global que afectará todas as economias, agravada ainda pelas incertezas de possíveis efeitos persistentes da covid- 19, designadamente no que respeita a eventuais novos surtos, à manutenção de medidas de distanciamento social que obrigarão a repensar o espaço público e as práticas sociais e culturais e que afectarão importantes sectores da actividade económica.

Penso, a título de exemplo, no sector do turismo, viagens, hotelaria, restauração e o sector do entretenimento (desporto, manifestações culturais, etc.). No caso português, basta pensar no peso do valor acrescentado bruto (VAB) gerado pelo turismo que, em 2018, representou 8% do VAB nacional e 9% do total do emprego, para nos darmos conta da dimensão do desafio que teremos pela frente. Por certo, haverá sectores da actividade económica que se terão de reinventar e outros modernizar. Será também uma oportunidade para corrigir a fractura digital e acelerar o processo de transição digital que, de alguma forma, a pandemia já precipitou.

Segundo as previsões do FMI, em 2020 assistiremos à mais grave retracção da economia mundial desde a Grande Depressão, com o crescimento mundial a cair para -3% e as economias avançadas com taxas negativas de crescimento de -6,1%. Para Portugal, o FMI prevê uma queda do PIB de 8% este ano, com o desemprego a situar-se nos 13,9% até ao final de 2020, estimando para a zona euro uma contracção de 7,5%. Relativamente às dívidas públicas, as projecções do FMI apontam para um aumento generalizado (média UE 131,1%, Portugal 135% do PIB).

Estas previsões, que praticamente colocam todos os membros da União Europeia no mesmo barco, deveriam ser suficientes para levar a um plano europeu robusto de reconstrução da economia e do desenvolvimento sustentável na Europa. Um tal plano não só iria ao encontro das expectativas dos cidadãos, mas poderia também fazer desta crise uma oportunidade para colocar a União Europeia na dianteira das transformações necessárias para enfrentar os desafios da transição demográfica, energética e da descarbonização, das transformações digitais, sob o pano de fundo da construção de sociedades democráticas, livres, justas, abertas e inclusivas, baseadas no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e do valor da solidariedade. Não é, porém, certo que assim sucederá por razões várias, mas que se prendem basicamente com um enorme e surpreendente défice de sentido partilhado de pertença a uma comunidade de destino que está na base do projecto europeu, mas que nem décadas de história comum alicerçou entre os seus membros…

Perante as previsíveis hesitações de uns e resistência de outros, poderá, então, porventura ser o momento de fazer avançar a União Europeia apenas com os que desejem apostar no seu fortalecimento, como aconteceu no passado com a livre circulação de pessoas ou com a moeda única. Desistir não é opção e não podemos deixar que um vírus mate a Europa e nos arraste consigo. Há que fazer do sobressalto civilizacional que estamos a viver uma oportunidade de renovação do pacto europeu. Quero crer que, como a Fénix, haveremos de renascer.

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