Agora o trabalho é a nossa casa

E aqui estamos, no teletrabalho massificado, movidos pelas contingências, numa lógica supostamente temporária, mas que terá certamente muitas consequências a médio e longo prazo. Trabalhamos a partir de casa ou vivemos no trabalho?

Está toda a gente em casa, é o que se ouve por aí. Excepto os que não têm tecto. Os muitos que estão a prestar serviços essenciais (dos auxiliares de saúde aos serviços de distribuição) e outros que continuam a laborar (construção civil, algumas indústrias) pela ganância de alguns perante a desprotecção de muitos outros. E depois existem os que estão em casa, alguns confortáveis, mas a larga maioria em angústia, na precariedade ou com empregos inseguros, e há ainda os que estão a operar em regime de teletrabalho. Provavelmente, a maioria.

A cada vez menor separação entre local de trabalho e espaço doméstico não é de agora. Nas últimas décadas vivemos na obsessão da vida produtiva, do consumo e do trabalho. Existiu uma altura em que trabalhar incessantemente é que era. Ser moderno era isso. Nunca desligar. Trazer o trabalho para casa. Ir com o emprego de férias. Ter palpitações ao domingo com saudades do escritório. Depois, com a crise económica de 2008, começou a fazer-se o contrário, levando a casa para o local de trabalho por razões financeiras. Deixámos de acumular arquivos nas secretárias, para guardar o almoço ou pacotes de cereais. E quem fala de comida, fala de objectos, acções e emoções, que deixaram de pertencer unicamente ao espaço caseiro. No limite, dormir no trabalho começou a ser aceitável. Não havia tempo a perder. E tínhamos de ser flexíveis.

E eis que, agora, com a quarentena, diferentes actividades tentam adaptar-se para serem feitas a partir de casa. Não se pode parar, dizem-nos. E aqui estamos, no teletrabalho massificado, movidos pelas contingências, numa lógica supostamente temporária, mas que terá certamente muitas consequências a médio e longo prazo. Claro que antes já havia quem o fizesse a partir de casa. Mas isto é outra coisa. Isto é deixar de trabalhar desde as nossas casas para passarmos a viver nos nossos trabalhos. O lar passa a ser a unidade de produção. A gestão do espaço e tempo, da internet e do computador, pertencem-nos, mas propiciam uma autonomia ilusória.

O domicílio é o emprego, sem a sociabilização, e com mais despesas e menos direitos. Como passou também a ser creche e escola para quem tem filhos. O doméstico e o laboral, o familiar e o profissional, confundem-se. O pessoal deixou de ser político, para ser apenas económico. Antes, estar em casa, significava ter tempo. Agora todos os patamares se misturam, e interrogamo-nos sobre o que acontecerá a um corpo que não convive com outros e que se habitua a que todos os dias pareçam domingo, sem que por uma única vez seja mesmo domingo.

Estranho mundo este onde, de um lado, temos pessoas angustiadas pelo excesso de trabalho, sem espaço e tempo para gerir as muitas solicitações, e do outro, em situação ainda pior, gente desesperada no desemprego ou a resistir dia-a-dia para sobreviver. O caminho que estava a ser seguido apontava para aqui. E agora isto, um novo quotidiano a ser dolorosamente reconstruído, obrigando-nos a reaprender a viver num mundo viral, com milhões de postos de trabalho e de sustentos postos em causa, sem que se veja coragem política para uma inversão. Seriam precisas reformas radicais, como até o sóbrio Financial Times profere em editorial. Inverter a orientação política dominante nas últimas décadas. Os Estados terem um papel mais activo na economia. Os serviços públicos serem vistos como investimento e não despesa. Um mercado de trabalho menos inseguro. A redistribuição ser crucial. Os privilégios, geracionais e dos mais ricos, revistos. Testar políticas como o rendimento mínimo garantido e impostos sobre a riqueza. De contrário, nunca mais será domingo. Quer dizer, para alguns será. Mas para a maioria não.

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