Uma portuguesa, um húngaro e um cão em (40m2 de) Madrid

Testemunho da directora comercial Luísa Geão. “Quando a vida nos troca as voltas, deixamos de poder viver em piloto automático. Temos de reaprender algumas coisas muito simples, como olhar com calma para a pessoa que está ao nosso lado.”

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Em Madrid, na fila para o supermercado LUSA/KIKO HUESCA

Madrid não rima com isolamento

Quando há quatro anos decidi mudar-me para Madrid, tinha apenas uma certeza, queria viver no centro para ir a pé para o escritório. Madrid escolheu-me a mim, eu não escolhi viver na capital espanhola. Vinha por trabalho e sem expectativas em relação à minha vida depois do expediente.

Não estava à espera de me apaixonar perdidamente por esta aldeia gigante, onde se vive nas calles e ninguém se sente estrangeiro. Por pura sorte, vim parar a um dos bairros mais castiços da capital, onde só podes viver se conviveres tranquilamente com o burburinhar das ruas.

Tudo mudou depois de o presidente do Governo de Espanha anunciar o estado de emergência e tudo aquilo que deixaríamos de poder fazer nas semanas seguintes. De repente, a cidade adormeceu, a polícia tomou conta das ruas e só podes sair de casa numa situação de emergência. De repente, tudo aquilo que me fez apaixonar por Madrid desapareceu. Estamos encerrados, em 40m2, uma portuguesa, um húngaro e um cão.

O nosso sótão de Babel

No primeiro dia de isolamento choveu. Na minha casa, a chuva anuncia-se sem cerimónias, porque vivo num sótão e todas as minhas janelas, à exceção de uma, são no teto. A chuva é coisa rara por estes lados e isso só adensou o cenário apocalíptico com que a semana arrancava.

O desafio de montar dois espaços de trabalho num apartamento tão exíguo foi superado com criatividade e tolerância. A sensação de alívio por podermos continuar a trabalhar superava a ansiedade de conviver sem interrupções numas águas-furtadas que passariam a ser o nosso mundo.

Neste pequeno novo mundo não falta diversidade. Durante o dia falam-se quatro línguas entre os deveres profissionais em inglês e espanhol e as relações pessoais em português e húngaro. A falta de contacto pessoal é compensada com uma torrente de videochamadas.

Muito nos foi tirado, mas o essencial persiste

A minha primeira reação à notícia do isolamento forçado foi raiva. É mais fácil estar revoltada do que triste. Também passei por uma fase de negação, não queria aceitar que a minha liberdade estivesse comprometida ao ponto de não me deixarem correr para manter a sanidade (mental, mais do que) física. Fui a última pessoa a deixar o escritório e insisti em ir a um restaurante no último dia em que se mantiveram abertos. Tudo parecia ficção e eu não estava a gostar do enredo.

A minha birra passou quando insisti em descer para ir ao supermercado na manhã seguinte ao anúncio de Pedro Sánchez e já não me deixaram entrar normalmente. Tive de fazer fila, com a devida distância da pessoa à minha frente, e quando entrei pediram-me para colocar luvas e não demorar mais de 15 minutos. Estava a comportar-me como uma criança e levei uma palmada bem merecida.

A partir desse momento, decidi deixar de lutar contra algo que não depende de mim e seguir em frente, apesar das adversidades. A minha vida agora seria diferente e eu tinha de deixar de pensar no que era e passar a imaginar o que poderia ser.

Quando a vida nos troca as voltas, deixamos de poder viver em piloto automático. Temos de reaprender algumas coisas muito simples, como olhar com calma para a pessoa que está ao nosso lado e passa a ser o nosso único contacto físico. Temos de encontrar dentro de nós os mundos que antes procurávamos fora.

O essencial, aquilo que nos faz ser quem somos, persiste. As relações mantêm-se com ajuda da tecnologia e há mais intenção nas palavras que se dizem, porque, sabemos, não vamos estar aqui para sempre. O paradoxo que governa a nossa existência vem ao de cima, mesmo para quem nunca perdeu muito tempo a pensar no sentido da vida. A consciência da nossa mortalidade humaniza-nos e aproxima-nos do outro. De repente, parece que é Natal.

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