Dia 17: Comer demais pode ser o outro lado da moeda desta pandemia

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Ana,

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Como sabes, não suporto ver enfiar comida pela boca de uma criança que não quer comer. Lembro-me, bem demais do que é sentir aquele nó na garganta que não permite que passe nem mais uma garfada, e que nada tem a ver com casmurrice. E por isso, hoje, quero encomendar-te uma melodia para uma canção que diga “Joana, não comas a papa!”. Vai ser o hino do movimento das crianças que se rebelam contra os pais — e, pior ainda, os avós —, que lhes querem provar o seu amor com mais um pratinho de qualquer coisa.

Percebo que ainda é historicamente recente a memória do que é passar fome, ou pelo menos ter pouco para comer, e que o nosso ADN ainda deve ter por lá inscrita a compulsão de armazenar calorias antes da próxima vaga de escassez, mas hoje o problema é o contrário: a percentagem de crianças portuguesas que sofre de obesidade é assustadora.

E, receio, que comer demais seja o outro lado da moeda desta pandemia, e tão perigosa como ela. Fechados em casa, parece haver pouco que fazer para além de cozinhar — já viste os anúncios na televisão, e os posts nas redes sociais? São todos sobre famílias a fazer bolos! E sem exercício, para abater os quilos somados.

Além do mais, se crescemos a usar a comida como almofada de conforto, é mais do que natural que deitemos mão dela, quando nos sentimos mais ansiosos. Eu tenho comido muitos quadradinhos de chocolate, confesso. Fico à espera da música. Não desisto dela.


Querida Mãe,

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Herdei essa sua aversão. Foi das coisas que mais me custou na minha experiência como educadora, ver colegas a obrigar e a fazer guerras intermináveis para que os miúdos comessem aquilo que elas determinavam que era o suficiente.

Muitas vezes, por medo das represálias dos pais, que protestavam, se no termo ou na caixa vinha devolvida comida.

Faço a música com todo o gosto, embora ache que ao facto da “Joana, come a papa!” existir, já é, só por si, a prova de que as crianças ao longo do tempo odeiam ser forçadas a comer. Daí a necessidade de inventar canções! Lol

Sei que há pessoas que têm filhos em situações verdadeiramente complicadas, com questões sensoriais ou de distúrbios que tornam a alimentação um problema verdadeiramente preocupante, mas muitas vezes o problema maior é só mesmo a ansiedade em redor do assunto.

Claro que é fácil falar quando se tem filhos, como os meus, que não param de comer, que ganham o peso certo desde bebés e que nos deixam descontrair e entrar numa de “se queres comer, comes”, mas partilho a sua preocupação de que a obesidade cresça com a quarentena — todos nós habituamo-nos, de alguma maneira, a comer por aborrecimento. Aqui em casa estou prestes a trancar a despensa!

Estava a pensar, a caminho do supermercado, que o ideal mesmo é não ter grandes quantidades de comida em casa, e nisso a quarentena até ajuda. Além de evitar a tentação de parar no café ou na pastelaria e comer coisas que só fazem mal. Aliás, eu aqui me confesso: tenho usado e abusado da covid-19 como bode expiatório! “Oh mãe, quero imenso chocolate, pizzas, pipocas e gomas”, “Oh, meu amor, eu por mim ia comprar-tas já, mas por causa da covid não posso, que pena!”, e depois rogamos pragas à doença a uma só voz.

Beijinhos!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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