Covid-19: Tratar até pode ser fácil; difícil é entender a doença!

Nunca é de desvalorizar a importância de novos fármacos. Porém, o que mais limita a aplicação dos tratamentos com fármacos existentes é o desconhecimento dos mecanismos da covid-19. É necessário entender a doença em toda a sua extensão.

Num destes dias, as minhas rotinas de gravação das aulas de farmacologia e de farmacoterapia para os meus estudantes de Ciências farmacêuticas foram interrompidas com o toque do telemóvel. A chamada era de uma colega da Universidade. Pretendia saber como estava e aproveitou para apimentar o isolamento com uma alfinetada quanto à (in)utilidade dos farmacologistas para a crise da covid-19 que, perante uma doença nova, a única ideia que nos surgiu foi usar medicamentos antigos. O seu tom de voz não refletia apenas a provocação jocosa, percebia-se o desânimo, impotência e a ansiedade causada por uma situação que ainda não percebemos como e quando vai acabar.

Dei o meu melhor para lhe demonstrar a utilidade dos farmacologistas. Expliquei que há opções que têm que ser trabalhadas e ponderadas nos bastidores antes de virem para a praça pública. Partilhei também algumas das discussões que estão a decorrer na academia e que até poderão criar novas oportunidades terapêuticas em tempo útil. A conversa terminou bastante bem! Acho que ficou com melhor impressão dos farmacologistas e com mais esperança de que iremos dar a volta à situação. Fez-me prometer que iria partilhar estas ideias, justificando o pedido com a necessidade de se saber que a comunidade científica não está apenas a contabilizar os mortos pela pandemia. Assim cumpro o compromisso!

Ideia primeira: A vida não é como a passerelle e não há qualquer problema em se repetir o mesmo fato ou vestido!

Existe a ideia de que um tratamento sério de qualquer nova patologia exige um fármaco especialmente criado para efeito. Nunca é de desvalorizar a importância de novos fármacos. Porém, o que mais limita a aplicação dos tratamentos com fármacos existentes é o desconhecimento dos mecanismos da doença. É necessário entender a doença em toda a sua extensão. Desde o nível molecular até ao impacto que tem essa perturbação na homeostasia (no equilíbrio funcional que assegura o funcionamento normal do nosso organismo), e como é que isso explica os sintomas da doença.

Se conhecermos bem as bases moleculares da doença, é possível escolher entre os milhares de fármacos os que têm mecanismos de ação adequados ao que queremos corrigir. Isto não é um retrocesso! É uma evolução no sentido de aprendermos a usar melhor os recursos que dispomos. A exploração de fármacos antigos para novas indicações é uma tendência que tem vindo a crescer. Designa-se por drug repurposing ou reposicionamento de fármacos. Haja quem financie este novo tipo de estudos de translação para a clínica já que dificilmente a indústria farmacêutica o fará.

Ideia segunda: o uso de um fármaco para nova patologia não se faz por decreto

Antes de ser autorizado o uso em doentes, o medicamento tem que mostrar a sua eficácia e segurança em ensaios clínicos realizados em voluntários e doentes.

Uma avaliação clínica pelo modo normal, by the book, é um processo complexo, caro e demorado. Obriga ao cumprimento de um conjunto de ensaios consensualizados entre as principais autoridades de medicamento mundiais, entre as quais está a Agência Europeia do Medicamento (EMA) e, indiretamente, o Infarmed. Exige, da entidade interessada, que por regra é uma empresa farmacêutica, uma capacidade de investimento em equipas especializadas, em medicamentos e exames complementares, em autorizações legais, seguros e na mobilização de equipas de saúde que, em hospitais diferentes, estejam dispostas para testar o novo fármaco nos seus doentes. Pretende-se evitar acidentes como o que aconteceu com a talidomida quando foi usada em grávidas nos anos sessenta.

Nas atuais circunstâncias, o interesse é público, mas não dispensa o cumprimento de estudos que garantam que os benefícios são muito superiores aos riscos. Não havendo equipas formalmente criadas para desenvolver hipóteses de trabalho como haveria numa empresa, temos tentado reunir o máximo de informação para desenhar hipóteses de trabalho que possam abrir as portas de intervenções farmacológicas complementares às que têm vindo a ser usadas. O processo está a seguir o seu curso. Partilhamos aqui convosco as principais ideias para combater a exasperante lentidão com que tudo decorre.

Ideia terceira: não reinventar a roda

Sun Tzu, um filósofo e estrategista chinês que terá vivido há cerca de 2500 anos, e a quem é atribuída a autoria de A Arte da Guerra, refere que uma das regras fundamentais para ter sucesso na guerra é conhecer o melhor possível o inimigo. Saber como se move, quais os seus pontos fortes e fracos e, no momento certo, procurar trazê-lo para um terreno que conheçamos melhor e onde possamos ter mais condições para o vencer. Parece-nos que estas regras têm total aplicação na guerra que estamos a viver contra a covid-19.

Conhecemos mal o vírus o SARS-CoV2. A doença apanhou-nos de surpresa. A SARS, que surgiu há cerca de 18 anos, foi causada por um vírus parecido. Como não atingiu as sociedades ocidentais, não induziu esta urgência para encontrar soluções que nos aliviem desta doença e nos preparem melhor para uma próxima. Agora, face às opções que dispomos, há que analisar o comportamento deste inimigo e tentar identificar possíveis pontos fracos que permitam outras formas de ataque.

Ideia quarta: o que não bate certo na covid-19

Tal como na SARS, o vírus da covid-19 pode causar pneumonias agudas muito graves. A pneumonia é uma inflamação pulmonar. Há inflamação no âmbito do processo normal de defesa contra a agressão. É uma componente da resposta da imunidade inata. É um passo fundamental para permitir a chegada de mais células imunes ao local da agressão e para o sucesso da luta contra o agressor. É importante também para a aquisição de imunidade já que serão essas células que irão apresentar os fragmentos do agressor às células produtoras de anticorpos e nos permitirão ficar imunes a esse agente infecioso.

O entendimento que tem prevalecido é que a pneumonia decorre desta excessiva resposta inflamatória de defesa contra o agressor. Porém, se o vírus desencadeasse uma excessiva resposta inflamatória (e a pneumonia) por via da ativação desta cascata das vias de defesa, essa deveria ser menos acentuada nos doentes em que as células da imunidade inata estão mais indolentes, como é o caso dos idosos e dos imunodeprimidos. Como explicar que esses grupos estejam nos de maior risco para desenvolver as pneumonias mais graves? A inflamação associada ao processo da imunidade inata é muito sensível aos corticoides. Porque é que estes fármacos são pouco eficazes na pneumonia da covid-19?

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Admite-se que o vírus tenha uma capacidade qualquer de desencadear algo nas nossas células que amplifica a cascata inflamatória de uma forma anormal. Mas a ser assim, por que é que essa resposta inflamatória extrema não é desencadeada quando o vírus infecta outros locais como as vias aéreas superiores e o tubo digestivo onde já se identificou a presença de vírus? O que é que torna as vias aéreas inferiores (a região dos alvéolos pulmonares) tão suscetível? O que faz com que a pneumonia alastre tão rapidamente? Como explicar que a “onda inflamatória” atinja todo o troço da pequena circulação, com atingimento cardíaco?

Ideia quinta: Um passo atrás para perceber o contexto

Para a resposta da nossa imunidade inata ocorrer, o vírus tem que entrar na célula. É uma entrada por conveniência mútua. Os nossos recetores para detetar vírus e para ativar a resposta de defesa estão dentro da célula e o vírus precisa de entrar para aproveitar a maquinaria celular para se replicar. Para entrar nas células, os vírus precisam de um(a) acompanhante. Uma proteína da nossa célula (recetor) à qual o vírus se consegue associar. Geralmente, estas proteínas/recetor estão associadas a tarefas de internalização pelo que a ligação do vírus a essa proteína induz a formação de uma vesicula de internalização que migra para dentro da célula. O vírus entra e deixa a membrana sem a proteína acompanhante. Parece-nos que devemos dar mais atenção às consequências que podem surgir da falta na membrana dessa proteína/recetor.

O recetor do vírus responsável pela covid-19 é uma proteína chamada por ACE2 (em português pode ser traduzida por ECA2, de Enzima de Conversão da Angiotensina de tipo 2). A ECA2 faz parte de um dos sistemas que controla os níveis e os efeitos de um potente mensageiro pró-inflamatório, pró-fibrótico e vasoconstritor: a angiotensina II. Com a ausência de ECA2 na membrana perdemos uma das formas para metabolizar e prevenir os efeitos exagerados da angiotensina II.

Ideia sexta: possível ligação entre a angiotensina II e os sintomas da covid-19

A angiotensina II é um mensageiro regulador da pressão arterial. Quando a pressão arterial baixa, ativa-se uma cascata que leva à formação de angiotensina II. A angiotensina II reduz a filtração renal (reduzindo a perda de líquidos), reduz a sensibilidade das nossas papilas gustativas (estimulando a ingestão de sal), causa contração arterial e induz nas artérias um processo inflamatório especial seguido de fibrose. Deste modo, os vasos ficam mais rígidos e mais estreitos e a pressão arterial aumenta.

Para garantir este efeito concertado e direcionado para os órgãos alvo, o passo final da síntese de angiotensina II é feito no rim ou nas papilas gustativas, para o caso dos efeitos sobre a formação de urina e ingestão de sal. A angiotensina II que vai atuar na circulação sistémica é sintetizada principalmente nos vasos da circulação pulmonar. Daqui a angiotensina II regressa ao coração de onde será distribuída por todo o território vascular.

O papel dos vasos alveolares na síntese de angiotensina II é conhecido há décadas. O que não está ainda bem conhecido são os mecanismos que estão presentes na circulação alveolar para se proteger das concentrações elevadas de angiotensina II. Conhecem-se vários sistemas que executam essa função (designados por mecanismos de contrarregulação). A ECA2 é um dos sistemas de contrarregulação. Atenua os efeitos da angiotensina II de várias formas. Uma delas é transformando a angiotensina II num outro mensageiro (a angiotensina (1-7) que exerce efeitos opostos à angiotensina II. A ECA2 é particularmente abundante num dos principais locais de síntese de angiotensina II (a circulação pulmonar) e onde surge a pneumonia na covid-19.

Em doentes com covid-19 que necessitaram de hospitalização foi observado que os níveis plasmáticos de angiotensina II são cerca de três vezes superiores ao normal, o que torna esta hipótese muito plausível. Uma contribuição da angiotensina II para a inflamação explicaria a rapidez com que a inflamação se espalha pelos pulmões. Explicaria porque é que essa inflamação se estende ao coração pois está também exposto aos níveis de angiotensina II trazidos pela pequena circulação. Explicaria também porque é que doentes hipertensos, diabéticos e idosos poderão ser mais sensíveis a desenvolver essa inflamação já que nesses grupos os sistemas de contrarregulação são menos eficientes, havendo um desequilíbrio a favor da angiotensina II. É por isso que milhões de pessoas com hipertensão tomam diariamente fármacos que atenuam os efeitos da angiotensina II. Se os quadros mais graves da covid-19 forem também devidos a um desequilíbrio a favor da angiotensina II talvez os mesmos fármacos nos ajudassem a reduzir o número de doentes com covid-19 que necessitam de hospitalização. Parece-nos uma possibilidade real e que poderá ser implementada em tempo útil.

Ideia sétima: by the book ou not by the book. Eis a questão!

Na terapêutica medicamentosa não existem soluções milagrosas e de risco zero. Parece-nos que a hipótese de uso de bloqueadores dos efeitos da angiotensina II é suficientemente sólida para merecer a realização de ensaios clínicos para testar a sua eventual eficácia. Tendo a segurança destes anti-hipertensores sido estudada para utilização crónica, não se antecipam grandes problemas com uma utilização curta (2 a 3 semanas após a deteção da infeção). Mas nunca se sabe! É assim que se deve fazer by the book. Porém, se a urgência o exigir, talvez seja o momento das autoridades de saúde pensarem em modos alternativos para permitirem o seu uso com um acompanhamento próximo por equipas de farmacovigilância e apoiadas por médicos de família e de farmacêuticos comunitários. Não é by the book, mas em tempo de guerra não se limpam armas!

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