Estratégia para a vitória

"O trabalho de todos os homens é um negócio sangrento", disse Yamamoto Tsunetomo, o autor de "Hagakure", O Livro do Samurai. E para aqueles que possam sentir-se demasiado distantes de tal preceito ditado por um teórico japonês da guerra do séc. XVIII, Tsunetomo fez logo questão de acrescentar: "Esse facto, actualmente, é considerado uma loucura, os assuntos são resolvidos inteligentemente apenas com palavras, e os trabalhos que implicam esforço são evitados. Eu gostaria que os jovens ganhassem algum entendimento sobre o assunto."Mil anos antes, um outro teórico da guerra, Sun de Wu, provável contemporâneo de Confúcio, transformou a estratégia de guerra numa aliança do engenho e da arte e nem a metáfora amorosa lhe escapou: "De início sede como uma modesta donzela,/ E o inimigo abrir-vos-á a porta;/ Depois sede rápidos como a lebre corredora,/ E será tarde de mais para o inimigo vos resistir."Ao contrário dos tratados de cavalaria, que a pena de Cervantes conduziu às chamas nesse satírico capítulo de "Dom Quixote" em que o cura Pero Pérez apenas salva do fogo as obras que lhe merecem gozo estético, a literatura homóloga oriental tem vindo a ser alvo de um fascínio crescente entre os leitores ocidentais. A muitos, inspira-os uma forma de pensar que fica suspensa algures entre a filosofia e as possíveis aplicações práticas do budismo. Outros, menos apostados numa ética que se confunde entre clareiras e sombras, preferem a vertente metafórica da linguagem da guerra. A palavra "guerra", claro está, não é a metáfora, mas sim as armas usadas, e não foram poucos os estrategas do mundo empresarial a transpor para o cenário das finanças e da competição económica o discurso ancestral sobre os exércitos combatendo em nome dos seus senhores.No caso de Mestre Sun (Sun Tzu), a sua prudência está longe dos heróis temerários a que a idolatria gosta de prestar homenagem. Os jogadores da bolsa dificilmente perderão o seu tempo a tomá-lo em linha de conta, mas aos investidores cuidadosos os seus conselhos de como atacar o inimigo irão parecer-lhe bem medidos: "O governante avisado avalia cuidadosamente cada situação; O bom comandante explora-a por inteiro; se não há vantagem nisso, não entreis em acção; se nada há a ganhar, não instaleis as vossas tropas; se não é mister disso, não as envieis para a batalha." O discurso de Mestre Sun está longe de corresponder à vontade de glória que enobrece os espíritos conquistadores e o seu bom senso antes aponta para os julgamentos cautelosos e as decisões ponderadas. É isso que o leva a relatar, com uma subtileza que alguns ministros recentes não entenderiam, o perigo dos governos de pequeno território se apoiarem numa administração que prospera através dos impostos e engorda o número de oficiais ao seu serviço. São muitos os tratados militares escritos nas mais diversas civilizações e épocas, e teriam de ser os próprios chefes a estabelecer as suas referências bibliográficas para aferir da validade de cada um desses manuais no sucesso das tropas e no bom governo das nações em guerra. A favor de Sun de Wu (544-496 a. C.) haverá a relatar o facto - descrito pelo tradutor no posfácio - de ter sido comandante e estratega ao serviço do rei Ho-lu de Wu (na actual província de Shantung, na China), valendo-lhe a conquista do estado rival de Chu, numa época em que o território chinês se dispersava por numerosos estados semiautónomos em permanente conflito. Como obra literária, "A Arte da Guerra" tem um valor ainda mais nebuloso, uma vez que apenas 13 capítulos sobreviveram aos humores da história, havendo ainda a acrescentar o facto de o livro que chegou até nós ser o mero registo de uma transmissão oral que atravessou gerações, acabando por se submeter a um esquema rítmico como óbvio suporte de memória. Sun de Wu não teve a sorte de um Sócrates mais ou menos fixado pela escrita de Platão, mas algum encanto terá sobrevivido a tantas vicissitudes porque as suas ideias, algures entre as tácticas de guerra e uma retórica política que faz sonhar com Maquiavel, estabelecem um pensamento alusivo e alegórico, que sobrevoa o seu tempo e a sua cultura, para aterrar serenamente na actualidade. Como é relatado num dos fragmentos do livro, a propósito de uma audiência com o Rei de Wu: "Utilizar os militares é ganhar vantagem; não se trata de gostar deles (...) Se Vossa Majestade deseja inquirir sobre a terra em termos de gosto ou de desporto, não me atreverei a responder." Ou seja, não há espaço para as paixões nem para chefes de Estado bem intencionados no exercício da governação. É por isso que dá tanta importância aos gastos do erário público num cenário de guerra (competitividade?), uma vez que a sua gestão desequilibrada já é um prenúncio de desnorte: "Se, apesar do seu dispêndio de patentes, de emolumentos e das cem moedas de ouro, um comandante não conhecer a situação do inimigo, então estará nos píncaros da inumanidade. Um tal ser não é comandante de homens, nem conselheiro de governantes, nem senhor da vitória."A gestão de recursos leva Sun de Wu a dar uma grande importância ao conhecimento por antecipação, não através da vidência, mas da espionagem, que lhe merece uma atenção especial, quer nas diversas formas de actuar, quer na tipologia que discrimina: "Quando os cinco tipos de espiões estão todos eles em actividade, e ninguém conhece os seus modos de operação (tao), chama-se a isso a teia imperceptível, que é o maior tesouro do governante." De resto, é neste campo em que exige do governante a sua maior lucidez e sensibilidade. O preciosismo do detalhe, a importância dada à mais inesperada situação de um exército em terreno de guerra não impede Mestre Sun de preconizar "um modelo unificado de coragem", em que "a consideração suprema é a velocidade", jogando na surpresa e na preparação. Miyamoto Musashi, o samurai de "Go Rin No Sho" (O Livro dos Cinco Anéis) era mais céptico no que respeita à elasticidade dos exércitos: "O que é grande, é fácil de controlar; o que é pequeno é difícil de controlar. É difícil mudar a posição de um grande número de homens, pelo que os seus movimentos tornam-se previsíveis. Um indivíduo facilmente muda de ideias, pelo que os seus movimentos tornam-se difíceis de prever." Ciente do vazio que se intromete entre a laboriosa organização da arte da guerra e os momentos imponderáveis em que o inimigo se agiganta, resta então a Sun propor o conhecimento das trevas: "Só quando todas as patentes mergulharam no perigo é que o exército conseguirá transformar a derrota em vitória." O sangue é afinal o destino até dos homens avisados: "Quando o teu espírito não é ensombrado por uma só nuvem, quando as nuvens enganadoras saem da frente, estarás perante o verdadeiro vazio" (M. Musashi).

Sugerir correcção