Dia 2: Uma lição sobre como não controlamos nada

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação infantil. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidade, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@designer.sandraf

Minha querida filha, 

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É uma coisa estranha, isto da solidão. Acho que não há mãe nenhuma que não a ambicione. A solidão controlada, a que sabemos que tem um fim, com hora marcada. Quando não a temos, sonhamos com tudo o que meteríamos dentro das horas que sobrassem só para nós. Mas, estupidamente, quando nos é imposta, em lugar de a aproveitarmos, sentimo-nos de cabeça leve, incapazes de nos concentrarmos em nada que não sejam as notícias à volta da covid-19, a trocar WhatsApps sobre o assunto, a tentar não entrar em pânico com o que pode estar para vir. 

Na verdade, obriguei-me a “ligar” aos noticiários só à noite, porque senão não faço mais nada, e temos mesmo de trabalhar. Mas entre assuntos, já sabes, preocupo-me contigo. E não é de agora. 

Irritas-te imenso quando te ligo a dizer que os teus supostos problemas me tiraram o sono — se comeste bem, se não estás demasiado cansada (quando já sei, de antemão, a resposta), se os teus filhos estão a dar contigo em doida, e também, às vezes, desculpa, mas é verdade, se vais ter paciência para aguentar os meus queridos netinhos, 24 horas sobre 24 horas, sem a minha ajuda, se calhar porque eu, na mesma situação, seria tentada a amordaçá-los, atados a uma cadeira.

Li um estudo que confirmava que 90% dos pais de filhos adultos perdiam o sono a preocuparem-se com eles, mas era um estudo da era Antes da Covid (AC) — vai haver um antes e um depois desta pandemia —, porque agora já devem ser 100%. São insónias idiotas, provocadas pela omnipotência de acreditar que se nos esforçássemos, conseguíamos que os nossos filhos e netos estivessem sempre bem. 

Sei que é ridículo, mas sempre que oiço um desabafo teu, precipito-me a arranjar uma solução, como se fosse soprar na ferida, e pronto ficava tudo resolvido. Mas, mesmo percebendo a inutilidade deste penso rápido, não entendo porque te exaspera tanto a minha tentativa. Para mim é um enigma: será que as filhas sentem que as mães, pior ainda as sogras, lhes estão a passar um atestado de incompetência, a insinuar que fariam melhor? É isso que irrita? 

Se tiveres um minuto, ilumina-me. 

Mummy 


Querida Mãe, 

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Acho que andamos todos com uma sensação estranha. Vamos variando entre o medo, a rebeldia (agora que não posso é que me apetecia mesmo ir ao Colombo em hora de ponta), a sensação de pertença — estamos metidos no mesmo sarilho —, e o sentimento de que devíamos aproveitar este isolamento para cumprir tarefas que adiámos. É mesmo uma lição enorme sobre como não controlamos nada. 

Infelizmente não tenho a grande resposta ao seu enigma! Mas, num dos melhores livros sobre parentalidade que já li, chamado “Como falar para as crianças ouvirem e ouvir para as crianças falarem”(*), há vários testemunhos sobre desencontros parecidos, e os autores concluem que os miúdos estavam só a desabafar, sem pretenderem que quem os ouvia lhes resolvesse os problemas, ou sequer tomasse partidos. 

Pensando bem, parece-me que é exactamente isso que exaspera as filhas quando desabafam com os pais. Procuramos um espaço para desabafar e receber empatia, e as mães procuram – por mais descontraídas que digam que são – soluções imediatas. A questão é que, pelo menos para mim, parte da estratégia de viver bem no dia-a-dia com a correria dos miúdos, é aceitar. Aceitar que não posso resolver tudo, convencer-me de que há coisas que vão passar e que só precisam de tempo, paciência e a possibilidade de ligar desesperada para a minha própria mãe, para que ela me diga que vai correr tudo bem. Entrar em modo “resolve já” traz-me uma angústia enorme, medo de não conseguir dar conta de tudo e a inerente sensação de estar constantemente a falhar. 

Também me parece que muitas vezes as soluções que as mães, e todos nós, oferecemos são feitas à medida de quem as dá. São as que funcionariam para nós sem ter em conta as preocupações do outro, as suas limitações, as suas prioridades. Soluções que normalmente não funcionam bem porque quem as tem de cumprir é a outra pessoa! 

Mas a empatia é uma estrada com dois sentidos e, muitas vezes, as filhas esquecem-se de onde vem esta preocupação toda. Se tiverem em conta que vêm exactamente do mesmo sítio de onde vieram as recomendações que, ainda ontem, fizemos aos nossos próprios filhos, vai ser muito mais fácil contornar (tantas) irritações. 

Love

(*) O livro é da Adele Faber e Elaine Mazlisn, e vale a pena ser lido.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.
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