A fraude das “baixas fraudulentas”

A generalização da recorrente rotulagem social de “baixas fraudulentas” de situações de incapacidade por doença para o trabalho por parte de trabalhadores por conta de outrem é que pode, em certos sentidos, ser uma fraude.

“Os trabalhadores em baixa profissional acabam por estar a trabalhar aqui e ali, o que é uma fraude, numa prática que se condena e que tem vindo a aumentar como se houvesse aqui ‘crime organizado’, passe a expressão”.

“As pessoas pensam: se o Estado dá, sem fazer nada, um pequeno ordenado, vou arranjar outro biscato noutro sítio qualquer e tenho dois ordenados. Os portugueses habituaram-se a ter tantos direitos que quando não lhes fazem aquilo que eles querem batem nas pessoas. Os médicos têm medo. Os que não dão baixa são atacados e são mal vistos na terra”.

“Há médicos ameaçados para fazerem coisas, ai isso há. (…) Pois se tivermos um médico perante um doente que chega à beira dele e diz que vem renovar a baixa e põe a pistola em cima da mesa, como já há relatos, o médico não tem segurança nenhuma”.

Estas três declarações são excertos de opiniões de três pessoas institucional e profissionalmente qualificadas. A primeira é do presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), António Saraiva. A segunda é de um grande e reputado empresário da indústria de moldes,  Henrique Neto. A terceira é do Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.

Foram proferidas há dias (12 de Fevereiro de 2020), na rádio TSF. Outros órgãos de comunicação social, incluindo o PÚBLICO [1], deram também relevância a este assunto que, de tempos a tempos, se destaca: as “baixas fraudulentas”. Designação que, por si só, desencadeia grande condenação (ou, pelo menos, suspeita) social sobre trabalhadores em situação de ausência ao trabalho por justificação de doença.

Agora, esta condenação social dos trabalhadores, como tal e como beneficiários da Segurança Social (SS), é potencialmente agravada com a associação a violência (sobre os médicos) e à hipótese de haver relação com uma “organização criminosa”.

Subjacentes a estas declarações, está agora o facto de ser publicamente conhecido que desde há 6 anos vem a aumentar o número de pessoas em situação de incapacidade temporária para o trabalho (ITP), vulgo “baixas”, quer em termos absolutos, quer em termos relativos ao aumento do emprego em Portugal [2].

Ora, face a isto, talvez convenha fazer algum enquadramento e reflectir um pouco sobre o que é que (não) é isso de “baixas fraudulentas”.

A situação de ITP tem que ser assumida por um médico do Serviço Nacional de Saúde (SNS), através da emissão (inicial, ou renovadora) de um certificado de incapacidade temporária para o trabalho (CITP), sendo este documento que vulgarmente é apelidado de “baixa médica” e que é suporte do trabalhador para, como tal, justificar perante o empregador as faltas ao trabalho e, como beneficiário, para lhe ser processado e pago pela SS o respectivo subsídio de doença [3].

O recurso a “baixa médica” em desconformidade com a regulamentação aplicável [4] implicam para o trabalhador, como tal, o risco de aplicação de sanção disciplinar (eventualmente, o despedimento com justa causa [5]) por parte do empregador, bem como o de, como beneficiário, de sanções por parte da SS (possível corte do processamento do correspondente subsídio de doença e suspensão mais ou menos longa de direitos, como beneficiário).  

A abrangência e frequência do controle das situações de ITP tem crescido sucessivamente, sendo que, segundo dados divulgados publicamente [6] pela presidente do Conselho Médico do Instituto da Segurança Social, ultimamente, 98% de todas as situações de ITP são ordinariamente controladas pelos serviços de verificação de incapacidades para o trabalho da SS, para além do controle extraordinário de outras situações mais especificas (por exemplo, as denunciadas como suspeitas de irregulares pelos empregadores ou outros).

O controle público de qualquer trabalhador/beneficiário na situação de ITP está, previsto na lei de forma rigorosa, com expedito e desburocratizado desenvolvimento administrativo e médico, quer por iniciativa dos empregadores (de acordo com o Código de Trabalho e sua regulamentação [7]), quer por iniciativa da SS (conforme respectivo quadro normativo [8]).

Que “fraude(s)”, então?

Uma hipótese de “fraude” é a de o trabalhador estar com “baixa” e, de facto, não estar doente. Mas, então, neste caso, a responsabilidade da suposta “fraude” é projectada também o médico assistente que, na unidade do SNS, emitiu o CITP (“baixa”).

A propósito, mesmo sem invocar a abrangente noção clássica de saúde da Organização Mundial de Saúde (”saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”), é de perguntar como se pode ligeiramente considerar “fraude” a invocação de alguém como estando doente, tanto mais quando um médico lhe reconheceu (prescrevendo-lhe “baixa”) como efectiva, real (e não “fraudulenta”) essa invocação?

Primeiro que tudo, não haverá aqui que ter em conta o progressivo envelhecimento da população trabalhadora (e, daí, maior probabilidade de surgirem incapacidades para o trabalho por razões de ordem pessoal e social mas também por razões de manifestação diferida de doenças profissionais latentes) e, sobretudo, a degradação das condições (materiais, sociais e organizacionais) em que o trabalho é realizado nos locais de trabalho em geral (como, aliás, é reconhecido pela Ordem dos Médicos)?

Depois, é de perguntar como pode um médico, por si só num centro de saúde, avaliar clinicamente com segurança a condição física e mental de um trabalhador, ponderando bem também as condições de trabalho desse trabalhador no seu local de trabalho?

Sim, como pode, com segurança, avaliar e decidir seguramente quais as (maiores) repercussões na saúde do trabalhador por este, não lhe sendo reconhecida (inicialmente ou por renovação) a “baixa”, para não incorrer em faltas injustificadas e suas consequências disciplinares de ordem laboral, ter que ir (re)enfrentar, (re)aguentar, possíveis más condições de trabalho (em absoluto ou relativamente à sua circunstancial condição física e ou mental)?

É certo que, numa perspectiva de “promoção da segurança e saúde no trabalho”, está estabelecido legalmente que o “médico do trabalho deve … instituir a cooperação necessária com o médico assistente” [9]. Contudo, é conhecido que tal cooperação efectiva é rara, por razões cuja análise, relacionada com o que (não) se passa nas organizações empregadoras em geral quanto ao domínio da segurança e saúde do trabalho (e, especificamente, quanto ao “serviço de saúde no trabalho” [10]), não se compadece com a já demasiada extensão deste artigo.   

É claro que sempre se poderá dizer, sem ironia, que esse médico poderá talvez seguir o conselho de um colega (Bernardino Ramazzini [11]) que, há mais de trezentos anos atrás, a primeira pergunta que fazia aos doentes que o procuravam não era a clássica pergunta “o que é que sente?”, que estamos habituados a ouvir do nosso médico assistente em qualquer centro de saúde, mas, sim, “o que é que faz?” [12]. Só que, justamente pela falta de condições de trabalho (também) dos médicos, isto não é assim tão fácil como apenas pronunciar as cinco palavras dessa interrogação.

Sim, há que também ter em conta, e muito, a falta de condições de trabalho dos médicos (associando-a, inclusive, ao já muito divulgado e estudado esgotamento – burnout - de muitos médicos) pela sobre-intensificação do trabalho (em duração e em ritmo) nas unidades de saúde, designadamente, pelo número de doentes a consultar em pouco tempo, o que não permitirá (para mal dos empregadores e da SS, é certo, mas também para mal dos trabalhadores doentes) um maior aprofundamento (inclusive integrando o respectivo contexto laboral e social de cada utente trabalhador/beneficiário da SS) deste tipo de situações.

Releva, também aqui, algo que tem passado muito despercebido: se “o trabalho dá saúde” (bem, depende…), a saúde dá trabalho. E, pelos vistos, actualmente, exagerado [13].

Mas, voltando a outra hipótese (que é, aliás, a mais acentuada pelo presidente da CIP e pelo empresário Henrique Neto), a de a baixa ser por alguém (e mais provavelmente pelos empregadores, eventualmente também por colegas de trabalho ou mais em geral por pessoas do seu contexto social) considerada “fraudulenta” por, ainda que não restem dúvidas que o trabalhador com “baixa” está mesmo doente, este, mesmo assim, está a trabalhar remuneradamente noutra empresa.

Se bem que, independentemente das razões que o trabalhador/beneficiário invoque (e uma delas poderá ser a de tão baixos serem, em geral, os salários – e consequentemente os subsídios de doença - em Portugal), tal situação constituir da sua parte uma objectiva violação das suas obrigações (uma fraude, sem aspas) como trabalhador e como beneficiário da SS, o certo é que, neste caso, há razões para presumir que tal fraude só se verifica e mantém se nela houver conivência de empregadores.

É que se o (outro) empregador para o qual o trabalhador se encontra a trabalhar na situação de “baixa”, desconhecendo ou conhecendo (o que agrava a fraude) essa condição de “baixa” do trabalhador, não alimentar situações de trabalho clandestino, ao não declarar previamente à SS (como é obrigação legal de todos os empregadores) a admissão desse ou de qualquer outro trabalhador e ou ao não declarar mensalmente (com reporte ao mês anterior) todos as remunerações pagas a todos os trabalhadores relativamente a todos os dias que lhe prestaram trabalho (como também é obrigação legal), a fraude é de seguida detectada pela própria SS. Com consequências punitivas para o trabalhador como beneficiário (corte do subsídio de doença e até devolução do já recebido e, mesmo, suspensão temporária de direitos), sem prejuízo de, como trabalhador, lhe poder ser aplicada uma sanção disciplinar de índole laboral por parte do empregador de cujo quadro de pessoal faz parte.

Não há qualquer dúvida sobre o direito (que, aliás, é uma obrigação de boa gestão e de exercício do poder / dever disciplinar) dos empregadores (privados e públicos) de controlarem e combaterem, com todo o rigor, o absentismo dos trabalhadores ao seu serviço, mesmo o absentismo com a justificação formal assente num CITP.

E menos dúvida há ainda sobre o poder/dever do Estado (neste caso, a SS) de, com toda a eficácia, prevenir e combater a fraude no usufruto de direitos e prestações sociais que gere, tanto mais que, em regra, como é o caso do subsídio de doença, elas são pagas com as contribuições para a SS de todos os trabalhadores em geral.

Mas, sem prejuízo disso, é necessário que se previna o risco das consequências deste contínuo (ou pelo menos recorrente) anátema de “fraude” (e, pelos vistos, agora até de “crime organizado”) sobre os trabalhadores (e, por associação, sobre os médicos) relacionado com a sua situação de incapacidade para o trabalho por doença.

Inclusive o risco (e são conhecidos casos concretos em que tal se verificou) de o sistema de verificação de incapacidades impor a “alta” a pessoas (ainda) com doenças graves e incapacitantes, afirmadas (e reafirmadas posteriormente à “alta” administrativamente determinada) pelos respectivos médicos assistentes e particulares. 

E assim há o risco de haver trabalhadores que, (ainda) doentes, para não incorrerem em faltas injustificadas perante o empregador, retomam coercivamente o trabalho em sofrimento e, eventualmente, agravando a doença, com o ónus da desconceituação profissional e social decorrente de a sua situação de “baixa” ser reputada de “fraudulenta”. O que é a negação dos fins humanos e sociais que estiveram e devem continuar a estar subjacentes ao rigor (que se deve manter) na verificação de incapacidades para o trabalho subsidiadas pela SS.

Outro risco associado a situações desta natureza e, em regra, pouco percebido é o de poderem vir a ser causa directa ou indirecta de acidentes de trabalho, visto que um trabalhador doente é um sinistrado em potência (na medida em que a doença, diminuindo capacidades físicas e ou mentais de comportamento profissional preventivo, agrava os riscos já decorrentes da natureza do trabalho e das condições materiais e organizacionais em que é realizado).

Outro risco, ainda, é o de anuviamento do ambiente socio-laboral do trabalhador em causa (com eventuais consequências psicossociais e, até, disciplinares), na medida em que tal situação descredibiliza profissional e pessoalmente o trabalhador perante os representantes do empregador e perante os seus colegas de trabalho, potenciando o risco de degeneração em situações de assédio moral no trabalho.

Enfim, de um ponto de vista empresarial, será que se pretende, para “combater o absentismo”, fomentar objectivamente o “presentismo” de trabalhadores (ainda) doentes, do que saem prejudicados o trabalhador (na sua saúde) e o empregador (na qualidade e produtividade do trabalho)?  

Será legítimo, até sustentável, almejar-se aumentar a produtividade (para já não falar da qualidade) do trabalho com trabalhadores física ou mentalmente já (ou ainda) debilitados na saúde?

Mas por que é que, não apenas numa perspectiva de rigorosa efectividade da lei mas também no de controle (por cruzamento de dados) e pedagogia neste domínio, não cumprem todos os empregadores as suas obrigações em matéria de comunicação prévia à SS da admissão de todos os trabalhadores que lhes passam a prestar serviço e de apresentação de declaração mensal com todas (mas mesmo todas) as remunerações pagas?

Não será tal, de certo modo, também uma “fraude” de (na) gestão das empresas que acaba por as prejudicar como tal e como entidades empregadoras?

De um ponto de vista administrativo (e, eventualmente, político), deverá (poderá) o funcionamento do sistema de verificação de incapacidades para o trabalho (por iniciativa patronal ou administrativa), mobilizando sistematicamente significativo número de pessoas (com competências médicas, administrativas e outras) e meios (das empresas e sobretudo da SS), partir do princípio de que a doença dos trabalhadores é uma “fraude”?

Ainda sob esse ponto de vista, ou seja, presumindo que a doença dos trabalhadores “defrauda” a SS, pretender-se eventualmente diminuir os tempos de baixa médica com “altas” de facto prematuras de trabalhadores (ainda) doentes e havendo o risco de isso poder ter como resultado o agravamento da doença, não será, de algum modo, uma “fraude” administrativa e mesmo, na hipótese de para tal haver orientação ou suporte (por acção ou omissão) da tutela, uma “fraude” política?

Mas, por que é que, também sob este ponto de vista e até numa perspectiva de saúde pública, não se parte do princípio de que os médicos que nas unidades de saúde do SNS emitem ou renovam as “baixas” (CITP) são (como são) competentes e isentos e, face à realidade existente, não se lhes criam (melhores) condições de trabalho (espaço, tempo, organização, meios, segurança…) de forma a (ainda) melhor serem, sustentadamente, precisos e rigorosos neste processo de consulta e emissão de CITP?

Enfim, obrigar alguém a trabalhar que pode (ainda) não estar em condições físicas ou mentais para tal (e ainda para mais não tendo em conta a natureza do seu trabalho e as condições em que o realiza), inclusive coagindo-o com a acusação (ou até só suspeita) de a sua invocação (e prova formal, até) da situação de doença é “fraudulenta”, não será, de algum modo, uma “fraude” desumana, para não dizer cruel?

Concluindo do que precede, a generalização da recorrente rotulagem social de “baixas fraudulentas” (e, agora, até de “crime organizado”) de situações de incapacidade por doença para o trabalho por parte de trabalhadores por conta de outrem é que pode, em certos sentidos (designadamente, económico, de gestão, administrativo, político e, mormente, humano e social), ser uma fraude.

[1] Por exemplo, PÚBLICO (12/02/2020 – “Ordem dos Médicos vai investigar baixas fraudulentas -https://www.publico.pt/2020/02/12/sociedade/noticia/ordem-medicos-vai-investigar-baixas-fraudulentas-1903858), Jornal de Notícias (12/02/2020 – “Baixas médicas batem recordes. Patrões dizem que há fraudes organizadas” - https://www.jn.pt/nacional/baixas-medicas-batem-recorde-patroes-dizem-que-ha-fraudes-organizadas-11812665.html) e jornal i (12/02/2020 - “Patrões falam em fraudes organizadas após número de baixas bater recorde” - https://ionline.sapo.pt/artigo/685966/patroes-falam-em-fraudes-organizadas-apos-n-mero-de-baixas-bater-recorde?seccao=Portugal).

[2] Segundo dados disponibilizados pela Segurança Social, em 2019, foi atingido o número, recorde, de 737.000 pessoas em situação de ITP e, por outro lado, se em 2016, 2017, 2018 e 2019, o número de trabalhadores empregados aumentou, respectivamente, 1,2%, 3,3%, 2,3% e 1%, nos mesmos anos, o número de trabalhadores (beneficiários da SS) em situação de ITP aumentou, respectivamente, 3,8%, 9%, 9,1% e 7,4%.

[3] O período de concessão e montante do subsídio de doença variam conforme, interligadamente, a natureza do trabalho, a natureza da doença e o tempo de prolongamento da baixa, sendo inicialmente, por regra, de 55% da” remuneração de referência”, conceito cujo método de cálculo, assentando na remuneração declarada pelo empregador à SS, decorre de definições legais.

[4] E, designadamente, o Código do Trabalho e eventual contratação colectiva aplicável, bem como a regulamentação específica da Segurança Social respeitante à condição de beneficiário.

[5] Alíneas f) e g) do N.º 2 do Art.º 351.º do Código do Trabalho.

[6] TSF – “Fórum” - 12/02/2020.

[7] N.º 3 do Artigo 254.º do Código do Trabalho e Capítulo VI- Artigos 17.º a 24.º da Lei 105/2009, de 14/9.

[8] Decreto-Lei 360/97, de 17/12, na sua redacção actual e outra inerente regulamentação da Segurança Social.

[9] N.º 5 do Art.º 108.º do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho, aprovado pela pela Lei N.º 102/2009, de 10/9, na redacção da Lei N.º 3/2014, de 28/1.

[10] Artigo 103.º e seguintes do regime jurídico referido na nota anterior.

[11] Precursor da Medicina do Trabalho (Pádua- Itália, 1633 – 1714).

[12] “Saúde mental e trabalho: ‘O que é que sente?’ e ‘O que é que faz?’”- PÚBLICO, 11/04/2017 - https://www.publico.pt/2017/04/11/sociedade/opiniao/saude-mental-e-trabalho-o-que-e-que-sente-e-o-que-e-que-faz-1768425

[13] “Serviço Nacional de Saúde: o longo braço do trabalho” – PÚBLICO, 13/01/2018 - https://www.publico.pt/2018/01/13/sociedade/opiniao/servico-nacional-de-saude-o-longo-braco-do-trabalho-1799157

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