A negação da existência

O erro de Carlos Costa é não entender a urgência em fazer a mudança de paradigma, daquele a que sempre se habituou e que coloca a autoridade burocrática do BdP no topo da pirâmide, a que os bancos devem obediência, para outro em que o BdP tem uma acção muito mais directa e constante, apoiada nas tecnologias digitais mais modernas para minimizar a margem de erro.

1. Em resposta ao meu artigo neste jornal “O caso EuroBic e a omissão do Banco de Portugal”, o governador do Banco de Portugal (BdP), Carlos Costa, publicou um esclarecimento em que diz:

É às instituições financeiras, e não ao supervisor (…) que cabe cumprir (…) deveres em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Nem o Banco de Portugal (…) conhece previamente ou acompanha e analisa em tempo real (ou, sequer, a posteriori) os milhões de operações que diariamente são processadas pelas centenas de instituições financeiras por si supervisionadas.”

O que existe é uma atividade supervisiva intensa destinada a verificar se as instituições estão dotadas dos meios – materiais e humanos – que lhes permitem cumprir (e se efetivamente cumprem) os deveres que, nesta área, lhes são impostos por lei. Deveres (…) que são das entidades supervisionadas e não do supervisor (…) é a qualidade desses sistemas que o Banco de Portugal supervisiona.

E conclui, rejeitando a minha opinião, que “não há, por isso, desresponsabilização ou autorregulação”.

Para Carlos Costa, não compete ao BdP combater o crime financeiro. O BdP não se desresponsabiliza, simplesmente porque não tem essa responsabilidade. Mas se não a tem, então pode dizer-se que há auto-regulação dos bancos? Também não, segundo Carlos Costa, porque os bancos devem obedecer aos regulamentos do BdP.

2. Há um problema prático e um erro de Carlos Costa que prejudicam muito o BdP.

O problema prático tem duas vertentes. A primeira é que não é possível ao BdP ter um bom controlo do combate à criminalidade quando não tem a competência para verificar o que fazem os bancos supervisionados. Porquê? Porque só mediante aprendizagem, experiência e incansável diligência se combate o crime financeiro. Visitas a bancos, feitas de vez em quando, não chegam para apurar com rigor se estes combatem ou não o crime financeiro. A ignorância do supervisor que não participa no combate ao crime não lhe dá sequer o saber necessário para testar e monitorar o que fazem os bancos. Dito de outro modo: o supervisor que não sabe nem pode conceber regulamentos eficazes, nem consegue verificar a utilidade prática destes.

A segunda vertente é mais profunda. Está em curso o que, na Teoria da Evolução, caracteriza uma súbita alteração de stasis (Punctuated equilibrium) que muda por completo a supervisão bancária, nas suas vertentes macro e microprudencial e de prevenção do crime financeiro. A causa é a transformação digital em que convergem as tecnologias disruptivas de cloud computing, big data, Internet of Things (IoT), robótica e inteligência artificial. Os bancos comerciais enfrentam um período de grande ambiguidade e sabem que muito do seu negócio está em risco de obsolescência. Quando as empresas já podem fechar as contas e apurar resultados em tempo real, quando se pode interligar virtualmente redes gigantescas de sectores inteiros da economia, o supervisor que não esteja permanentemente em cima do que se passa e que não tenha o know-how tecnológico para extrair conclusões com grande rapidez vai ficar muito exposto a falhas que lhe podem ser letais. Nesta nova realidade, a criminalidade financeira é ainda mais difícil de reprimir. Basta imaginar que os offshores estão a ser substituídos por clouds mutantes e elásticas e que parte dos pagamentos se faz em curto-circuito dos bancos, mas sem os deixar livres de riscos.

O erro de Carlos Costa é não entender a urgência em fazer a mudança de paradigma, daquele a que sempre se habituou e que coloca a autoridade burocrática do BdP no topo da pirâmide, a que os bancos devem obediência, para outro em que o BdP tem uma acção muito mais directa e constante, apoiada nas tecnologias digitais mais modernas para minimizar a margem de erro.

3. Um outro ponto do esclarecimento de Carlos Costa não deixa o BdP bem visto, quando diz: “Mesmo quando (…) as referidas instituições suspeitem que as operações podem estar associadas a um quadro de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, não são (nem têm que ser) as mesmas comunicadas ou por qualquer forma dadas a conhecer ao Banco de Portugal, mas apenas à Polícia Judiciária (Unidade de Informação Financeira) e ao Ministério Público. O Banco de Portugal não é a autoridade com competência para a investigação criminal.”  

Com esta afirmação, Carlos Costa reafirma que o BdP não tem nada que ver com o combate ao crime financeiro. Claro que tem, até por motivos macroprudenciais; porque se não, nunca se vai aperceber senão tarde de mais (talvez através da Polícia Judiciária?) que um banco português suspeito da prática, ou rumor apenas, de crimes financeiros corre o risco de ver congeladas as swap lines e retiradas as garantias dadas pelos bancos internacionais, desencadeando uma crise sistémica no mercado interbancário e a emergência de uma intervenção do Banco Central Europeu. Estranho que tal opinião possa vir de alguém que sabe que a confiança é o oxigénio do sistema financeiro.

A atitude de que o BdP não toma parte activa no combate à criminalidade financeira, nem o governador acha ser seu dever lutar para que os políticos mudem as leis anti-corrupção, é como que uma negação da existência. No seu desinteresse e apego a preceitos, Carlos Costa encarna a figura do Coronel Aponte na Crónica de uma Morte Anunciada de Gabriel Garcia Marquez. Santiago morreu por negligência. No caso do BdP, é muito importante que não morra por irrelevância.

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