Eutanásia: As vidas indignas

Aprovar a eutanásia é convite a uma sociedade menos solidária para com os doentes, os que têm menos recursos e os que estão mais sozinhos.

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Olga Kononenko/Unsplash

Sou especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva e tive, na semana que passou, a oportunidade de assistir nos Cuidados Intensivos um doente crónico de trinta e poucos anos com uma doença neuromuscular degenerativa. Está há vários anos totalmente dependente da ajuda de terceiros para se deslocar, alimentar e em todos os cuidados de higiene. Está ainda dependente de suporte ventilatório não invasivo para respirar. Este doente tem um apoio diário incondicional da sua família, de associações não-governamentais dedicadas a este tipo de doentes e do sistema de saúde.

Apesar de toda a sua debilidade, ainda consegue, com o apoio da família e das associações, fazer natação. É acompanhado em consultas de especialidade no hospital onde tem o adequado apoio médico e de enfermagem. Todos os cuidados prestados tentam ir ao encontro do tratamento da doença, mas acima de tudo do suporte e conforto do doente. Independentemente do mau prognóstico, grau de dependência e mesmo do sofrimento que a doença possa trazer, a vida deste doente vale tanto como qualquer outra. Esta vida é sempre digna.

Em Portugal está agendada para breve a votação de projectos de legalização da eutanásia e suicídio assistido. Que perigos corre este doente com a aprovação destas leis?

1. O doente tem vontade de viver mas sabe que com a aprovação da despenalização da eutanásia é brutalmente enfraquecido o conceito de inviolabilidade da vida humana, em especial das vidas não produtivas e dependentes como a sua, que assim ficam à mercê de soluções fáceis e imediatas apelidadas de “morte digna” para vidas presumivelmente tidas como menos dignas. O valor da vida passa a ser relativo e dependente de circunstâncias. Naturalmente, sabendo que é um peso para os seus cuidadores, será impelido a ter um gesto de “altruísmo”, solicitando a sua própria morte como se fosse a única coisa decente a fazer.

O doente sente e sabe que a sua vida passa a ter menos valor que outras, menos dignidade e, por isso, pode ser descartada.

2. A família e as associações que dão apoio ao doente recebem uma mensagem de desvalorização da doença crónica e incapacitante. Por um lado, o doente pode mais facilmente ser olhado como um incómodo e um empecilho; e, por outro, a falta de solidariedade, disfunção familiar e eventualmente o oportunismo e a ganância poderão empurrar o doente para a dita “morte digna”.

Horroriza que o doente que vive pacificado num clima de cuidado e carinho possa ver aberta, pelos seus cuidadores, a oportunidade da morte como resposta possível para a sua doença.

3. Num país em que apenas 25% da população tem acesso aos Cuidados Paliativos é de prever que, no momento em que é confrontado com uma situação de agravamento ou progressão da doença, com maior fragilidade e sofrimento, tenha certamente condicionada a sua opção pela eutanásia. Diria que é, no mínimo, cruel a aprovação destas leis num país que precisa de um enorme investimento na saúde, para que se possa aliviar o sofrimento de quem tem doenças graves e incuráveis. Escolher o caminho mais fácil e mais barato, em que não existem os meios para minimizar a solidão e o sofrimento, colocando hipótese de eliminar a vida do mais doente e desfavorecido é inaceitável.

A aprovação da eutanásia não pode ser uma prioridade, nem acredito que seja a resposta que o Sistema Nacional de Saúde deve dar a este doente.

4. Quando uma pessoa está cercada pelo desespero, o Estado e a sociedade devem estender-lhe a mão, aliviando-lhe o sofrimento, em vez de a conduzir para a morte. Quando um doente pede para ser morto porque acha que a sua vida não tem sentido ou porque sente que é um peso para os outros, o Estado não deve validar esse sentimento de vida menos digna.

Numa sociedade cada vez mais envelhecida, o nosso empenho tem de estar em criar condições para quem envelhece, em ajudar quem sofre lesões irreversíveis ou adoece gravemente a sentir-se acompanhado e protegido. Estes são os verdadeiros sinais de progresso civilizacional.

Aprovar a eutanásia é um convite a uma sociedade menos solidária para com os doentes, os que têm menos recursos e os que estão mais sozinhos. É este o Estado e a sociedade que queremos?

Este doente não quer um país onde supostamente há vidas que, pela sua fragilidade, vulnerabilidade, dependência e doença, são indignas e, por isso, sujeitas à crueldade da proclamada “morte digna”.

Não há vidas indignas e o Estado não pode transmitir isso pela via legislativa.

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