Confiança e transparência

Não está em causa proibir os juízes de serem membros das organizações que entenderem. Trata-se apenas de revelarem publicamente uma condição que pode, em abstracto, condicionar a percepção social sobre a sua imparcialidade.

Na semana passada soube-se que há clubes de futebol a serem investigados por fraude fiscal e branqueamento de capitais em transferências de jogadores. Por infeliz coincidência, soube-se também que o Conselho Superior da Magistratura decidiu só aplicar a nova norma do estatuto, que pode proibir os juízes de integrarem os órgãos das entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, aos que no futuro quiserem exercer essas funções. Compreendo que uma norma restritiva de direitos não se possa aplicar retroactivamente. Já compreendo menos que alguém se mantenha nesses lugares depois de entrar em vigor uma norma que obriga a obter autorização escudado em razões formais.

Já aqui defendi que essas ligações são contrárias ao prestígio, credibilidade e confiança da Justiça (“Juízes e futebol”, 29/08/2018). Recebi críticas internas, de quem acha que só devo apontar os erros dos outros e esconder os nossos. Pago bem esse preço. Mudarei de ideias se me convencerem que no futebol não há pancadaria nem insultos nas reuniões, que as claques não são espaços de delinquência, que não há coacção antidesportiva sobre árbitros e adversários, que não existem negócios mal explicados nos milhões que circulam entre empresários, clubes e dirigentes, que não há ligações perigosas à política, à finança e à justiça, que os dirigentes e técnicos são cordatos e respeitadores e que não se dá cobertura a comentadores televisivos arruaceiros. Quando isso acontecer e houver a certeza que ninguém tem de fechar os olhos ao que não deve, aí sim, podem ir os juízes todos para o futebol.

Noutro plano, foi igualmente notícia que a Associação dos Juízes emitiu parecer favorável à obrigatoriedade da declaração de pertença a organizações secretas. É verdade. Isso foi proposto ao Conselho Superior da Magistratura e à Comissão de Transparência. Porquê? Porque é o que está certo. O Compromisso Ético dos Juízes Portugueses recomenda que os juízes não integrem “organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos associados”. Os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial estabelecem que “é desaconselhável a um juiz pertencer a uma sociedade secreta da qual advogados que podem actuar perante ele sejam também membros, já que pode ser inferida a possibilidade de favorecimento àqueles advogados” (parágrafo 127 dos Comentários). O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já se pronunciou duas vezes sobre a pertença de juízes a lojas maçónicas, nos casos N.F. v. Itália, em 12/2/2001, e Maestri v. Itália, em 17/2/2004. Considerou que a punição disciplinar dos dois juízes violou o artigo 11.º da Convenção que estabelece a liberdade de associação, porque a norma proibitiva não era clara. Porém, não afirmou existir compatibilidade entre o exercício de funções judiciais e a pertença à maçonaria.

Há juízes que preferiam que não se tocasse neste assunto. Não concordo. Não se trata de diabolizar esta ou aquela organização nem de dizer que este ou aquele juiz não é íntegro e imparcial. Não faço ideia do que se passa nessas organizações, de quem lá está e que compromissos de obediência se estabelecem. São secretas para isso mesmo. Mas esse é que é o problema: a falta de transparência que gera desconfiança. Não está em causa proibir os juízes de serem membros das organizações que entenderem. Trata-se apenas de revelarem publicamente uma condição que pode, em abstracto, condicionar a percepção social sobre a sua imparcialidade, quer quando exercem funções jurisdicionais, quer quando exercem funções administrativas em órgãos de representação, gestão e disciplina ou de presidência de tribunais. Quando me convencerem que essas organizações não são redes tentaculares de influência imprópria no mundo da política, da justiça e dos negócios, então aí mudo de ideias.

Os princípios éticos são como um farol na noite escura. Há mestres de barcos que conseguem navegar sem essa orientação. Outros guiam-se pela luz e desviam-se do perigo. O farol não vai impedir que alguns barcos se espatifem nos rochedos. Mas o que ninguém pode é dizer que não havia uma luz para guiar o caminho.

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