O vírus não precisa de passaporte

As pandemias são, pela sua dimensão e consequências, uma questão política e de segurança.

Pelo menos desde a peste negra que o mundo se confronta, ciclicamente, com o flagelo de epidemias e pandemias. A terrível praga do século XIV, originária da China, cruzou a rota da seda com os comerciantes e em poucas décadas chegou à Europa. Entre 1346 e 1353, dizimou um terço da população.

O século XX conheceu três grandes pandemias. A primeira, em 1918, em plena guerra mundial, foi a terrível gripe espanhola. Em seis meses infetou 500 milhões de pessoas, provocou 50 milhões de mortos e condicionou fortemente a conduta da grande guerra. A segunda, em 1957, a gripe asiática e a terceira, em 1968, a gripe de Hong Kong. Causaram um milhão de mortos cada uma.

Os progressos científicos nas vacinas e antivirais e o desenvolvimento dos sistemas de saúde e a organização da resposta em situação de emergência reduziram, significativamente, as suas taxas de mortalidade. Reduziram, mas não eliminaram. E o mundo está outra vez confrontado com um surto viral que assume já uma dimensão epidémica e que ameaça tornar-se pandémica.

Tudo começou em Wuhan, uma cidade de 11 milhões de habitantes no centro da China e que é um hub donde irradia a rede de transportes e comunicações para as cidades mais populosas do país. O primeiro caso do coronavírus foi identificado em 12 de Dezembro, estendendo-se ao período do ano novo chinês em que há milhões e milhões de viajantes. De então para cá o vírus espalhou-se com grande velocidade.

Na China contam-se até hoje cerca de 3000 casos e registam-se até agora mais de uma centena de mortos. Passou as fronteiras e outros 18 países nos cinco continentes registam já mais de 40 casos. Os cientistas, com base nos seus algoritmos, calculam que possa atingir, globalmente, os 40.000.

As pandemias são, obviamente uma questão de saúde pública. Mas, pela sua dimensão e pelas suas consequências, são muito mais do que isso. São uma questão política e de segurança. E devem ser tratadas como tal. Política, porque a resposta à crise implica escolhas, decisões e alocação de recursos que são, eminentemente, políticas. De segurança, porque a segurança já não é o que era. Tempos houve em que a segurança era encarada apenas como a segurança do Estado e o instrumento para garanti-la era exclusivamente o uso da força. Da força policial quando se tratava da segurança interna ou da força militar quando se tratava da segurança internacional. Hoje, a segurança é também vista como a segurança das pessoas e os seus instrumentos vão muito para além do uso da força, incluindo as ciências médicas quando se trata deste tipo de crises.

As pandemias põem em causa a vida das pessoas e são por isso uma questão de segurança humana. No plano político, a primeira questão, em situações de emergências, é a da transparência. Muitos governos, sobretudo autoritários, tendem a ver estas crises como sinal de fraqueza, a negar o problema e a censurar a informação. Mas a ausência de informação facilita a propagação da doença e favorece o boato e o pânico. A informação interna e a partilha de informação internacional são, por isso, fundamentais para gerir as expectativas do receio público e controlar a propagação além-fronteiras. Uma segunda questão é a do envolvimento dos técnicos nas decisões políticas da resposta à crise. Assim como na guerra o conselho dos estrategas militares é essencial e tem um lugar institucional na decisão política, também nas crises pandémicas, o conselho dos cientistas é essencial e deve ter igual estatuto. Finalmente, a alocação dos recursos. Durante a resposta à crise, as autoridades têm que assegurar que o sistema de saúde é não só tecnicamente competente, mas também socialmente justo. Isto é, que os recursos (médicos, máscaras, vacinas, medicamentos) estão equitativamente distribuídos na sociedade.

Mas se as epidemias se confinam a um determinado território, as pandemias são de natureza global. O vírus não respeita fronteiras nem precisa de passaporte. Desloca-se com o movimento das populações. Contagia e espalha-se globalmente. É, neste sentido, uma ameaça transnacional. E só pode ser combatida pelo reforço da cooperação internacional: de partilha de informação científica, de interoperabilidade dos sistemas de saúde e ligados à Rede Global de Alerta e Resposta a Surtos Epidémicos da Organização Mundial da Saúde. Isto é, num quadro multilateral, envolvendo Estados, Organizações Internacionais e Não Governamentais. E as próprias pessoas que, cidadãos informados, são cada vez mais agentes da sua própria segurança.

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