A Justiça a braços com o problema “Rui Pinto”

Se Rui Pinto vai ter de pagar pelos crimes que cometeu, aceite-se também a bondade das pistas que ele forneceu à justiça para se desmontarem negócios espúrios do futebol ou as fortunas baseadas em dinheiro de proveniência duvidosa.

A confirmação de que Rui Pinto foi o responsável pela entrega de 715 mil documentos a uma plataforma que luta contra a corrupção em África (seguindo daqui para um consórcio de jornais que integra o Expresso) é uma bomba contra o formalismo burocrático da justiça portuguesa. Com essa confirmação, Rui Pinto deixa de ser apenas o pirata que tenta extorquir dinheiro a uma empresa que negoceia direitos de futebolistas, para se tornar no responsável pela queda do império obscuro de Isabel dos Santos.

Deixa de ser só o perigoso violador dos direitos básicos de privacidade, para se tornar, aos olhos dos cidadãos, num paladino na denúncia de corrupção de poderosos. Deixa de ser um banal hacker manipulado para pôr a nu práticas suspeitas do Benfica, para se aproximar da aura de Edward Snowden, o homem que revelou a forma como o Estado norte-americano violava, em permanência, direitos individuais.

A forma como a justiça tem tratado Rui Pinto há muito que causava não só espanto, mas também temor – José Pacheco Pereira escreveu há dias no PÚBLICO que não se lembrava “de ver pedófilos, assaltantes, homicidas a serem expostos e ‘passeados’ assim pelas polícias”. O uso de algemas e a encenação para expor a suposta perigosidade de Rui Pinto incomodavam pela desproporção. Com os Luanda Leaks, esse teatro parece ainda mais ridículo.

Se o jovem terá de pagar pelos crimes que cometeu, aceite-se, ao menos, a bondade das pistas que ele forneceu à justiça para se desmontarem negócios espúrios do futebol ou as fortunas baseadas em dinheiro de proveniência duvidosa. O que deixou de ser possível para uma justiça que se reclama credível, transparente e independente é ver apenas o lado pérfido de Rui Pinto.

Depois de se confirmar que foi o jovem de Gaia a tornar público fortes indícios de nepotismo e corrupção de Isabel dos Santos, a justiça portuguesa terá de sair do conforto da interpretação formalista da lei. Não pode arriscar no custo de insistir na punição do mensageiro sem atender ao teor das mensagens.

Como escreveu o jurista e académico André Lamas Leite no PÚBLICO, há, em relação a este caso, “um amplo espaço de interpretação à doutrina e, em última análise, à jurisprudência”, porque a condenação ou não de alguém “cabe sempre aos tribunais”. As decisões que se aguardam serão difíceis e certamente polémicas. Mas só uma será percebida por um país cansado das negociatas: a que exige a investigação, o julgamento e a luz da justiça sobre todos os factos que nos chegaram ao conhecimento pela mão de Rui Pinto.

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