A comédia orçamental

A comédia orçamental segue para o segundo episódio – a chamada votação final global – e, entretanto, assistiremos às últimas escaramuças mais ou menos encenadas da versão “soft” portuguesa do TINA.

O último debate e votação na generalidade do Orçamento do Estado (OE) foram uma nova variação da comédia política em que temos vivido desde os tempos da legislatura anterior, ou seja, da “geringonça”. Encenou-se um falso suspense sobre a votação dos partidos à esquerda do PS, quando estava escrito nas estrelas que iria acontecer o que efectivamente aconteceu. Nesta comédia orçamental o elemento musical da dança está no centro do palco e nos bastidores das negociações, onde tudo parece previsto para evitar surpresas desagradáveis e eventualmente perigosas aos bailarinos em cena.

Face ao encenador Mário Centeno – que, apesar dos seus “arrufos” com Costa, ou talvez por causa disso, faz questão de assumir a “mise-en-scène” da peça –, os actores ou dançarinos, à esquerda e à direita do palco, limitam-se a representar os papeis que lhes estão distribuídos, sem recear por vezes a caricatura. Foi o que sucedeu com Rui Rio ou outras componentes da direita, do CDS ao Chega, manifestando-se enfaticamente contra o aumento dos impostos como tema quase único – e hipócrita, tendo em conta a herança de Passos Coelho – para justificar um confortável voto de rejeição. Quanto à esquerda, a dança já estafada entre PS, PCP e Bloco – com Costa a repetir o número de privilegiar a gravidade de Jerónimo às pantominas bloquistas – era também inevitável para salvar as várias faces e conveniências. Daí o Orçamento estar dotado da elasticidade conveniente para abranger tanto quanto possível – e sem prejuízo da autoridade do encenador Centeno, aliás com poderes reforçados relativamente aos Orçamentos anteriores – as reivindicações dos antigos parceiros da “geringonça”, permitindo reeditá-la sem a marca de origem.

Entre outras cedências previamente calculadas para satisfazer as esquerdas – e outros clientes eventuais –, o exemplo porventura mais acabado e quase grotesco deste negócio orçamental são os 0,3 por cento de aumentos – 0,3, mas, já agora, porque não 0,1? – previstos para a Função Pública. Ninguém no Governo – e o próprio Centeno, apesar da inacessibilidade que insiste em exibir, por obediência ao dogma das contas certas – poderia ignorar que esses irrisórios 0,3 por cento constituíam uma provocação grosseira a um conjunto de reivindicações profissionais, sindicais e políticas. A hipótese alternativa é que representavam sobretudo um instrumento negocial, embora servindo desde logo para restringir expectativas demasiado “irrealistas”, neste e noutros domínios. A elasticidade orçamental é não apenas necessariamente comedida – e desenhada à medida das aparências básicas que é preciso salvaguardar em nome da esquerda – como tem como contraponto o aumento das despesas inscritas no OE (2800 milhões de euros) à disposição régia de Centeno.

Chegámos então à versão portuguesa do “There is no alternative”, a famosa doutrina do TINA, proclamada por Margaret Thatcher? Não tanto, convenhamos. Mas o certo é que as esquerdas estão reféns da herança e das consequências políticas da “geringonça” – sendo que qualquer ruptura nesse compromisso seria duramente sancionada em futuras eleições – e as direitas institucionais parecem actualmente depauperadas e perdidas, como é o óbvio caso do CDS mas eventualmente do PSD que, ainda ontem, votava dividido entre Rio, Montenegro e Pinto Luz.

A comédia orçamental segue para o segundo episódio – a chamada votação final global – e, entretanto, assistiremos às últimas escaramuças mais ou menos encenadas da versão “soft" portuguesa do TINA. Para já, resumindo e concluindo, do primeiro episódio ficou apenas uma surpresa (e ainda assim relativa): a abstenção rebelde do PSD Madeira em troca da construção do novo hospital que a região reclama há longo tempo.

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