Um discurso de Belém com sabor a São Bento

Quando lemos um discurso do Presidente e ele nos parece um discurso do Governo, temos de reconhecer que há-de haver por aí uma confusão de papéis.

Em tempos de normalidade, os discursos de Natal e do Ano Novo ficam condenados a resumir-se a palavras moles, vontades gerais e promessas fáceis. Se no Natal o primeiro-ministro fez a apologia e assumiu compromissos em relação ao Serviço Nacional de Saúde que qualquer político da ala moderada poderia subscrever, no Ano Novo o Presidente da República respondeu-lhe com um discurso que António Costa subscreveria de ponta a ponta.

Estejamos atentos: enquanto o ciclo de aprovação do Orçamento do Estado de 2020 não se fechar, enquanto não se perceber que quadro de estabilidade à esquerda vai o Governo ter a médio prazo e enquanto não se perceber bem o que vai acontecer ao CDS e ao PSD, o Presidente será macio como seda. O pior que lhe pode acontecer é um ano de barafunda a anteceder a sua mais que provável recandidatura.

Marcelo Rebelo de Sousa não gosta de ser assim. Se se empenha em não causar conflitos, não deixa de soltar farpas, de fazer avisos à navegação ou denunciar opções erradas. Ontem, porém, até essa capacidade de dissimular remoques em apontamentos e de dar alfinetadas aqui e ali se gorou.

O seu discurso do Ano Novo é o discurso do Governo. Não está, por exemplo, longe do discurso de António Costa na sua tomada de posse – com basicamente as mesmas prioridades para o ambiente, as desigualdades, a demografia ou o conhecimento, o mesmo inventário de dificuldades e o mesmo remédio para as superar, através de um “governo forte, concretizador e dialogante”. O Presidente está a ficar ainda mais ecuménico e arrisca-se a transformar a “cooperação entre os palácios de São Bento e Belém” num casamento aborrecido e inútil.

Compreende-se que o Presidente queira ajudar o Governo que trocou a previsibilidade da “geringonça” pela incerteza da corda bamba a encontrar o seu caminho. Mas há muitas formas de o fazer. A colagem não será a mais recomendável.

Uma coisa é percebermos que o Presidente, e bem, elege a estabilidade como prioridade e tudo faz para a garantir, nem que para isso tenha de aparecer a cada passo ao lado do Governo; outra coisa diferente é assumir uma pose paternalista e protectora que abdica da influência ou da moderação transformada em muleta.

Quando lemos um discurso do Presidente e ele nos parece um discurso do Governo, temos de reconhecer que há-de haver por aí uma confusão de papéis. A política sem tensão partidária e institucional não costuma dar bons resultados.

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