Vídeos de segurança e de grupo nacionalista entram na investigação ao ataque à Porta dos Fundos

Grupo que se identifica como integralista reivindica ataque com cocktails molotov contra humoristas e seu especial de Natal da Netflix. Imagens de videovigilância mostram matrícula e um rosto.

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Porchat e Duvivier numa das imagens promocionais do programa da Netflix DR

A polícia do Rio de Janeiro continua a investigar o atentado à sede da produtora e do grupo de humoristas brasileiros Porta dos Fundos e já conta com novos dados: um grupo ultranacionalista reivindica o ataque com dois cocktails molotov arremessados contra o edifício no Rio de Janeiro, e imagens de várias câmaras de videovigilância revelam o rosto e a matrícula de alguns dos veículos e autores do crime.

A imprensa brasileira revelou nas últimas horas de quarta-feira e na madrugada desta quinta-feira que foi publicado um vídeo na Internet (que ainda pode ser encontrado em sítios como o YouTube) em que um grupo auto-intitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira reivindica, usando linguagem tipificada do conservadorismo extremista, “a acção directa revolucionária que buscou justiçar os anseios de todo o povo brasileiro contra a atitude blasfema, burguesa e antipatriótica que o grupo de militantes marxistas culturais Porta dos Fundos tomou quando produziu o seu Especial de Natal”.

O vídeo, de cerca de dois minutos, mostra três homens encapuzados. Um deles lê um comunicado, com a voz distorcida, usando um nome inspirado no movimento conservador e católico de extrema-direita brasileiro nascido na década de 1930. Nele, o grupo extremista acusa a Porta dos Fundos de “ataque directo contra a fé do povo brasileiro” e de ser um “agente burguês culpado do crime de lesa-pátria”, mostrando-se imagens que poderão ser do próprio crime, em que são atirados cocktails molotov numa rua à noite.

De acordo com o jornal brasileiro Folha de São Paulo, a polícia está já a analisar o vídeo e fontes policiais confirmaram que as imagens são da fachada da sede de Porta dos Fundos.

O ataque terá sido motivado pelo programa do grupo de humoristas brasileiros para o serviço de streaming Netflix no qual a figura de Jesus Cristo é representada como podendo ser gay e, como assinala o grupo extremista, a figura de Maria é apresentada como adúltera.

O especial de Natal A Primeira Tentação de Cristo, disponível na plataforma desde 3 de Dezembro, gerou alguma polémica em alguns grupos conservadores pela sua temática, originando uma petição, apelos ao boicote à Netflix e críticas públicas de figuras como Eduardo Bolsonaro, deputado e filho do Presidente brasileiro. Uma associação religiosa chegou a pedir a remoção do programa na justiça, que negou o pedido por considerar que se trataria de um acto de censura. O grupo que reivindica o ataque critica também essa decisão judicial.

O vídeo do grupo extremista, escreve a Folha de São Paulo, começou a circular no dia de Natal. O mesmo grupo já tinha reivindicado no passado um ataque a duas universidades em que queimou bandeiras antifascistas.

Pedidos de acção

Os humoristas já tinham garantido que o ataque, ocorrido na madrugada da véspera de Natal no bairro de Humaitá, no Rio de Janeiro, não os silenciará. Ao diário carioca O Globo, um dos humoristas, Fábio Porchat, denunciou quarta-feira a “homofobia”, “nítida” dos responsáveis pelo ataque.

“Para nós, do Porta dos Fundos, ser gay é uma característica como qualquer outra. A pessoa pode ser alta, baixa, branca, negra, gay, hetero. Para os homofóbicos, ser gay é xingamento [insulto]. Aí é que mora o preconceito. Se não identificarmos esses terroristas, isso pode soar como um aval para que mais atentados sejam encorajados a acontecer. O país e o estado precisam de mostrar que não aceitamos ataques violentos de qualquer espécie contra quem quer que seja. Contra o Presidente, contra o Porta dos Fundos ou contra você”, alerta o apresentador e comediante.

Em comunicado, o grupo em que também participa Gregório Duvivier manifesta-se “confiante de que o país encerrará essa tormenta de ódio e o amor prevalecerá junto com a liberdade de expressão”. Entretanto, figuras da cultura brasileira como o escritor Paulo Coelho manifestaram o seu apoio ao Porta dos Fundos e a consternação perante o ataque à liberdade de expressão. “Alerta: se os terroristas que atacaram o Porta dos Fundos não forem imediatamente punidos, isso vai empurrar o país para conflito de proporções gigantescas”, escreveu o popular romancista no Twitter.

Os humoristas estão a colaborar com as autoridades, fornecendo-lhes imagens das câmaras de segurança. Também os contributos das testemunhas, desde um segurança que apagou as chamas causadas pelos cocktails molotov, até aos frequentadores de uma festa num bar ao lado da produtora, vão fazer parte da investigação. As chamas foram contidas a tempo e afectaram apenas a recepção e parte do quintal da sede, diz o jornal O Globo.

O diário O Globo noticiava quarta-feira que imagens de videovigilância no local mostram a matrícula da camioneta onde viajavam três das pessoas que atiraram os cocktails molotov, uma das quais sem o rosto tapado. O mesmo jornal escreve que há uma quarta pessoa envolvida, que fugiu de motorizada.

Humor e religião

A relação entre o humor e a religião tem um longo historial de tensões com grupos conservadores e a discussão sobre a liberdade de expressão e a transgressão como ferramenta cómica a entrar na discussão há largas décadas.

Casos mais recentes em Portugal envolvem desde o famoso caso do episódio do programa Humor de Perdição, de Herman José, cuja entrevista histórica à Rainha Santa Isabel não foi para o ar em Junho de 1988 até, mais uma vez com Herman José como protagonista, o sketch sobre a Última Ceia que em 1996 motivou críticas da Igreja Católica e até do actual Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no programa Parabéns.

Na animação, a série de animação norte-americana South Park tentou representar o profeta muçulmano Maomé mas o canal Comedy Central não o permitiu, entre muitos outros casos na história. A violência associada à censura tem exemplos ainda mais recentes, como o atentado à redacção do jornal satírico francês Charlie Hebdo em 2015 ou às violentas manifestações contra a publicação de cartoons que representavam Maomé (algo que é geralmente proibido na religião muçulmana) no diário dinamarquês Jyllands-Posten em 2005.

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