Das rebeliões várias à “rebelião global” em curso

Hong Kong é talvez a mais simbólica das rebeliões da vaga de protestos que está em curso a nível global.

1. A vaga de protestos que agora assola o Irão é apenas mais uma onda de choque da “rebelião global” em curso. No caso do Irão, há um contínuo com o Iraque e com o Líbano – países onde há fortes comunidades xiitas. O povo sai às ruas, clamando contra as más condições de vida e contra a paralisia dos seus governos. Na velha Pérsia, vale o preço dos combustíveis, mas podia ser outro o motivo. O Médio Oriente está em convulsão. A tragédia das guerras no Iémen e na Síria não explica nem consome tudo. A mudança dirigida e musculada da Arábia Saudita tenta talvez prevenir o contágio. Não pode ignorar-se este eixo de protestos populares Líbano-Iraque-Irão e o que ele pode significar.      

2. No Mediterrâneo, o Egipto continua intranquilo, a Líbia está em total deriva, a Tunísia vive da incerteza, a Argélia rebenta em vagas de protestos e manifestações e é quem mais preocupa. Marrocos, para já estável, e sem que ninguém dê por esse esforço, continua a conter e a acumular o movimento migratório vindo do Sul. O destino imediato do Norte de África está umbilicalmente ligado ao da Europa.

3. Na América Latina, e na América do Sul em particular, as manifestações populares de contestação não param de eclodir. A desigualdade social marca o tom. No Equador, saído das aventuras do socialismo bolivariano, as tensões, designadamente com a população indígena, são evidentes. No Chile, irrompeu o mais surpreendente dos movimentos, com os jovens e os pensionistas nas ruas. Na Bolívia, o mais previsível dos embates. Depois da perpetuação ditatorial de Morales, tão flagrantemente tolerada pela esquerda portuguesa, veio a reacção popular contra a fraude eleitoral. A saída de Morales, no entanto, não abriu as portas a uma transição para a democracia; mas a uma ocupação do poder por um ala fundamentalista que apostará na política do ressentimento. Na América do Sul e na massacrada América Central – de El Salvador à Nicarágua, das Honduras ao Haiti – ainda tudo pode acontecer. Na Venezuela, na Argentina, no Peru ou no Brasil, o poder também se vai jogar nas ruas. A imprevisibilidade e a instabilidade, os perigos e os riscos prevalecerão.

4. A mais simbólica de todas e a mais silenciada é, porém, a rebelião de Hong Kong. Na China, militar e digitalmente controlada, a persistência dos levantamentos estudantis de Hong Kong é um acontecimento político de relevância global. Um movimento desta natureza, ocorrido em qualquer outro Estado, teria hoje uma visibilidade incomparável e suscitaria uma enorme corrente de solidariedade ocidental. Mas porque o movimento desafia a China e o seu enorme poder, são poucos os que se atrevem a estender a mão aos jovens daquela cidade-região. O braço de ferro que está a decorrer tem tudo para acabar numa afirmação opressiva de Pequim, com consequências imprevisíveis. É impressionante a luta pela liberdade e pela autonomia ali revelada. É decepcionante o silêncio cúmplice do Ocidente, à espera de mais uns dólares ou euros em exportações. Já esquecemos o Tibete e o Dalai Lama, nunca nos chegámos a lembrar dos uigures, já só falta apagar, com o clique de uma tecla, Hong Kong. Hong Kong é talvez a mais simbólica das rebeliões da vaga de protestos que está em curso a nível global.

5. Esta sincronia de protestos e de descida às ruas, muitas vezes com afloramentos de violência e, mais frequentemente, “castigada” por violência estatal, há-de ter um sentido. É evidente que tem contextos nacionais ou regionais muito marcados e que aponta para causas e para sinais ideológicos muito diversos, sem visível afinidade entre si. Mas parece haver um rastilho comum de propagação que se activa e incendeia em torno da causa que mais se propicia em cada ambiente. Há qualquer coisa de comum nesta intranquilidade global, neste “mal-estar” global”. Há uma consciência global – ou consciências globais – em sobressalto.

6. As rebeliões e as revoluções são como os pobres do Evangelho: sempre as teremos entre nós. Mas as novas tecnologias e, principalmente, a dinâmica das redes sociais potenciam o efeito de imitação e de contágio. As redes sociais, mesmo quando bastante domesticadas pelos poderes políticos, facilitam enormemente os mecanismos de comunicação e interacção em cadeia. Há porventura quem objecte que as vagas de democratização na Europa do Sul, na América Latina e na Europa do Leste corresponderam já, cada uma delas, a um nexo de mimetismos. Ou mais recentemente, em pleno reino das redes sociais, a primavera árabe. Haverá, sem dúvida, paralelismos que podem estabelecer-se, mas ainda assim havia aí uma circunscrição regional e uma identidade de condições político-ideológicas que nestas vagas, mais espontâneas e mais caóticas, não se vislumbram. Olhe-se para as linhas de simpatia entre o movimento de Hong Kong e os protestos na Catalunha e pode bem perceber-se os fluxos de “comunicação” das rebeliões em curso.

7. A sociedade das redes sociais explica estes fluxos de comunicação entre movimentos tão heterogéneos, seja na sua etiologia, seja na sua teleologia. A digitalização é um dos factores que mais tem contribuído para a luta pela participação directa dos cidadãos no processo político, sem representantes e sem mediações. Essa ilusão da participação directa tem efeitos perversos, pois o clamor por uma “democracia directa” atinge indiferentemente os regimes regimes autocráticos e ditatoriais e as democracias liberais. O curto circuito ocorrido na Bolívia mostra bem como se pode transitar imediatamente de um populismo bolivariano de esquerda para um populismo proto-religioso de direita. O clamor dos povos é justo e bem-vindo; os riscos da sua manipulação continuam muito altos. Esta rebelião global tem um desígnio assente numa insatisfação genuína; mas os pressupostos que a potenciaram não garantem automaticamente um final feliz. As democracias directas, com um alegado poder das e nas ruas, não são democracias, onde impere o primado da pessoa e dos seus direitos.

SIM e NÃO

SIM. José Cid. O Grammy latino de excelência musical coroa uma carreira de enorme talento e grande capacidade de criação e inovação, a que nem sempre se fez justiça. Este prémio tira todas as dúvidas.

NÃO. Ministra da Saúde. A situação do SNS é altamente preocupante e nada mudou com o novo Governo. Prioridade à ilusão de aumento dos rendimentos, com deterioração severa dos serviços públicos. 

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