A crise de 29 e o mito do New Deal

A história não se repete. Mas é uma bússola. Não foram as medidas keynesianas que reverteram a crise de 1929. A economia de guerra foi sim “a saída da crise”.

No dia 24 de Outubro de 1929, as acções da bolsa de Nova Iorque caíram 50%. Em apenas um dia. Os EUA tinham-se tornado, nos anos 20, os credores do mundo contemporâneo. Em 1925, mais de metade dos stocks de ouro eram por eles detidos, roubando assim o lugar cimeiro à Inglaterra, que acabou por suspender o pagamento da dívida na sequência do crash de 29.

Em 2008, a seguir ao colapso da Lehman Brothers, um líder financeiro alemão mandou todos os dirigentes subordinados da empresa ler O Capital. As vendas dispararam na Alemanha, em muitos sectores. Os ciclos económicos da produção capitalista, descritos n’O Capital de Marx, que ocorriam no século XIX sensivelmente a cada dez anos (estão mapeados pelo Departamento de Comércio norte-americano), têm um ciclo de vida que podemos descrever assim: período de crise, expansão, pico de acumulação, crise novamente. A origem das crises cíclicas é a desvalorização da propriedade por aumento do capital constante (investimentos, máquinas, tecnologia, etc.) face ao capital variável (salários).

Simplificando, na luta concorrencial do capitalismo — que se opõe à economia planificada, com um plano, sem concorrência —, todos os capitalistas vão aumentando o investimento em tecnologia, maquinaria, etc. E isso representa investimento e custos. A origem da produção de valor é o trabalho. O lucro, desta relação salários/investimento, vai tendencialmente caindo. Até ao ponto da deflação nos preços de produção. Por outras palavras, quando os capitalistas colocam os seus bens no mercado é abaixo da taxa de lucro média desejada. Ou mesmo com perdas. A expressão disso é a queda do valor real dos títulos, da propriedade em geral. É aí que se dá uma queda nas bolsas, que não é a origem da crise, mas o sintoma dela. O valor das acções cai quando os empresários retiram os seus investimentos porque consideram não ter uma taxa média de retorno aceitável. Em 1929, a queda das acções chegou aos 80%.

Seguem-se medidas contracíclicas para repor as taxas de acumulação: desemprego, encerramento de fábricas, intensificação ou alargamento da jornada de trabalho, expansão para novos mercados e concentração de empresas pela falência das pequenas (magistralmente retratados por Steinbeck e Ford em As Vinhas da Ira). Se nos EUA o colapso do crédito proletarizava os camponeses, do outro lado do mundo a Alemanha militariza a sociedade, e cria um embrião de Estado Social com obras públicas, depois de eliminar fisicamente os opositores socialistas e comunistas; na URSS, onde amplos direitos sociais universais eram garantidos, Estaline eliminava a oposição de esquerda e começava um programa militar e industrial baseado na colectivização forçada e no trabalho forçado. Todos se preparavam para a guerra.

O rendimento dos trabalhadores nos EUA passou para metade entre 1929 e 1932. Os governos abandonaram o padrão-ouro e apostaram na desvalorização da moeda. E, nos primeiros anos, na protecção alfandegária. Todas essas medidas só pioram a crise. A crise contagiou assim rapidamente a Europa: em 1932, a produção mundial tinha caído 33%, o comércio mundial 60%. E contabilizam-se mais de 30 milhões de desempregados. Em 1933, a produção automóvel tinha reduzido 80% e, sem contar com os bancos, que faliram na verdade mais tarde —, haviam falido até 1933 um total de quase 107 mil empresas nos EUA.

Com a nova onda de revoluções, greves, protestos e manifestações com epicentro na Espanha, França, nos EUA, Grã-Bretanha, Áustria, há uma mudança radical destas políticas proteccionistas para as políticas keynesianas, o New Deal. Em que o Estado capitalista passou a ser “açambarcador, banqueiro e produtor”. As propostas keynesianas incidiram sobre a protecção social, desconhecida em grande medida até aí. Mas também, e sobretudo, na fixação de preços, alocação obrigatória de força de trabalho a determinados sectores (aconselho o magnífico livro de Kiran Patel, Soldiers of Labor), acordos nacionais de condições de produção – era uma economia capitalista planificada. Associada às obras públicas, por sua vez assentes num défice controlado.

Porém, ao contrário do que é erradamente referido comummente, estas medidas não resolveram as crises. Em 1937 a queda da taxa média de lucro tinha regressado. As taxas de desemprego de 1929 só foram revertidas quando os EUA entraram na II Guerra, em 1941. Foi a economia de guerra, ou seja, transformar desempregados em soldados, a inutilizada capacidade instalada em máquinas de produção de material guerra, que reverteu a crise de 1929. O New Deal só reduziu o desemprego de 13 para nove milhões. A partir de 1937, o New Deal transformou-se em War Deal. Em 1938 cortaram-se 800 milhões de dólares destinados ao seguro social e a obras públicas, e dá-se o aumento dos gastos de defesa (200 milhões de dólares a mais em 1938, e 400 milhões de dólares em 1939). Em 1939, os Estados europeus começam a comprar armas aos EUA e eles próprios também se armam. A economia de guerra foi “a saída da crise”...

Os campos de concentração nazi eram campos de trabalho forçado. Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta) era a inscrição nos portões dos campos, dos quais não era possível sair (tirando fugas heróicas). O trabalho forçado, à escala de milhões entre 1939 e 1945, em centenas de campos e subcampos, inseridos na cadeira produtiva de algumas das maiores empresas da indústria alemã, esteve no centro do projecto do Estado nazi. Muitas destas indústrias reconhecerem publicamente a sua cumplicidade com o nazi-fascismo, reconverteram-se no pós-1945 e são hoje parte do pujante motor económico alemão, ainda que restruturadas na produção: passaram de produzir material de guerra, tanques e bombas para a produção de sectores químicos/agrícolas, eléctricos, automóveis, entre outros. Thyssen, IG Farben (AGFA, BASF, Bayer, Hoechst), Volkswagen, só para citar as mais conhecidas, entre centenas.

A história não se repete. Mas é uma bússola. Em 2008, a maior crise desde 1929 teve lugar. A resposta para a crise, além do desemprego e degradação das condições de trabalho, foram “resgastes” financeiros astronómicos e concentração de riqueza nos países centrais (arrasando com o que restava de mercados internos em países como o nosso). A Alemanha hoje tem uma nova crise. E os EUA também. As taxas de juros estão a zero. Os EUA de Trump ameaçam com medidas proteccionistas; a Alemanha, com o New Deal Verde, uma gigantesca reconversão (paga por quem? Com que custos ecológicos? Com que impacto na periferia como Portugal?) da sua indústria automóvel.

Recordo o meu argumento inicial, não para mimetizar 2019 com 1929, mas como alerta. O desemprego nos EUA e na Europa só foi revertido em 1938-1941 quando começa a militarização da sociedade e se transformam desempregados em soldados. Não foram as medidas keynesianas que reverteram a crise de 1929 mas a proletarização massiva de largos sectores camponeses (com a colectivização forçada na URSS ou o colapso bancário dos pequenos camponeses nos EUA) e, mais tarde, a destruição da propriedade a uma escala inédita na história da humanidade – foi a economia de guerra, o apocalipse da II Guerra Mundial, com os seus, os nossos, 80 milhões de mortos. Foi a maior derrota da humanidade. Historiadora, autora de “Breve História da Europa” (Bertrand)

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