A vida de Dorival Caymmi dava um filme — e deu mesmo

Um filme no DocLisboa reaviva Dorival Caymmi na ribalta do nosso convívio. De onde nunca saiu.

Você já foi ao DocLisboa? Não? Então vá. E vá conhecer, ou reconhecer, Dorival Caymmi. Porque muitas das canções brasileiras que por aí andam na memória popular, e que se julga serem até do domínio público, sem autor, têm a assinatura dele. Como a que é parafraseada no início deste texto: “Você já foi à Bahia, nêga?/ Não?/ Então vá.” Ou então esta, que a dado momento do filme Gilberto Gil trauteia: “Samba da minha terra deixa a gente mole/ Quando se canta todo o mundo bole/ Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça ou doente do pé.” Para dizer, logo de seguida: “Isso todo o mundo sabe, todo o mundo canta, todo o mundo sabe que isso é exemplar da cultura do Brasil. E quem fez? Por acaso, foi ele.”

E quem é ele? É Dorival, que muitos tratam apenas por Caymmi, embora na descendência o apelido já se tenha multiplicado, desde logo pelos seus filhos Nana, Dori e Danilo, o mais novo. O que traz este filme, intitulado Dorival Caymmi - Um Homem de Afectos, é uma visão mais próxima daquele a quem Gilberto Gil (que o teve por sogro, pois foi casado com Nana) chamou um dia, carinhosamente, Buda Nagô. “Pela razoável corpulência, evocando um pouco a imagem física do buda e ao mesmo tempo aquela doçura, aquela suavidade”, como Gil recorda no filme.

Foto
Dorival Caymmi durante a entrevista no filme de Daniela Broitman DR

Dorival Caymmi - Um Homem de Afectos, que no DocLisboa tem duas projecções marcadas na Culturgest (dia 24 às 21h30 e dia 25 às 16h), foi realizado pela brasileira Daniela Broitman, autora do documentário Marcelo Yuka no Caminho das Setas, sobre o fundador e baterista do grupo O Rappa, que ficou paraplégico em 2000 após ter sido baleado nas costas durante um assalto e veio a morrer em 2019, depois de dois AVC. A ideia, como Daniela explicou esta terça-feira já em Portugal, numa entrevista à Rádio Observador, não foi dela, embora tenha crescido a ouvir Dorival (a avó cantava as canções dele) e tenha “uma memória afectiva da sua obra”. Sucedeu que um dia, sendo ela professora, estava a dar uma aula de documentário, e uma aluna, baiana como Dorival (e advogada de direitos de autor), mostrou vontade de fazer um filme sobre Caymmi. Começou o projecto, na sala de aula, mas como nunca tinha feito cinema, pediu a Daniela que produzisse o filme. E esta acabou mesmo por fazê-lo. Escreveu o guião, produziu-o e realizou-o, e nesse processo foi-se “apaixonando cada vez mais pelo universo” de Caymmi, sem procurar uma hagiografia “mas o lado mais humano, com os seus defeitos, as suas sombras.”

E eles habitam o filme, do primeiro ao último minuto, numa mistura entre uma entrevista inédita, feita em 1998, dez anos antes de ele morrer (“percebi nuances da poesia dele”, disse Daniela), na casa de Lígia e Marcelo Machado, um dos seus melhores amigos, e na presença do filho mais novo, Danilo. Por sinal (conforme dirá mais tarde Dori, seu irmão) o preferido do pai.

Ainda antes do genérico, vemo-lo, sedutor como sempre, na preparação da entrevista. “Então vocês têm a impressão que eu vou sair bonito? Porque eu estou com a impressão que estou um pouco idoso. (…) Tem uma fase da vida que a gente quer ser bonito. Quando eu era adolescente, diziam assim: ele é muito bonito. E eu acreditei. Então vivia me tratando assim, parecia — comparando mal — um Rodolfo Valentino.” E isso motivava-o, claro. “No decorrer desta vida, de menino até hoje, esta idade em que estou, eu carrego minha dose natural de simpatia, porque é reflexo de vida interior. Eu, vaidosamente, gosto de mim. Não vai egoísmo nisso. Porque aprendi a gostar de mim gostando de outros, né? De outras pessoas. É como se aprende a gostar.”

E os que gostavam e gostarão sempre dele confessam-no no filme. Caetano Veloso di-lo assim: “Caymmi foi uma presença assim, de poesia, beleza, música e sensibilidade na minha vida, uma base. Para mim, ele é o maior, a maior figura da música popular brasileira de todos os tempos.” E Gilberto Gil confirma essa ideia de eternização da herança de Dorival: “Para mim, ele não foi, ele é, será sempre. Enquanto eu existir, existirá Caymmi. Porque eu sou fluxo da corrente dele. Estou na água desse rio e ele é um rio que continua correndo.” Falam ainda dele os filhos, Nana, Dori e Danilo, a compositora Ana Terra (que foi casada com Danilo) e outras personagens com ligações à sua vida, em depoimentos recentes, enquanto Dorival se eterniza na entrevista de 1998 (morreria em 16 de Agosto de 2008, com uns bem vividos 94 anos) e em imagens de arquivo, com Carmen Miranda ou Caetano Veloso. Uma eternização para que o filme de Daniela Broitman contribui, reavivando Dorival na ribalta do nosso convívio. De onde nunca saiu.

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