Este impeachment não é como os outros

Com Trump, não só estão em causa as regras da democracia como envolve uma questão de segurança. Esta é uma questão de política externa que pode ter reflexo na segurança internacional.

Outra vez o impeachment. Em Abril foi a Rússia. Agora é a Ucrânia. Mas porque é que, antes, dois anos de investigação e milhares de páginas do relatório Mueller não resultaram em nada e agora um simples telefonema entre Trump e o presidente ucraniano provocou de imediato a abertura do inquérito? Porque no caso da Rússia, Trump não era o protagonista. E agora no caso da Ucrânia é ele o centro da operação.

Antes, nada era claro. Tratava-se da interferência da Rússia na eleição presidencial americana em favor de Donald Trump e da obstrução à justiça, isto é, dos esforços do Presidente para dificultar ou mesmo impedir o trabalho da investigação. Agora está tudo preto no branco. É o próprio presidente que condiciona uma ajuda americana e a cooperação com a Ucrânia, a “um favor” do seu homólogo: que ajude a investigar um processo relacionado com o seu mais directo rival na corrida à Casa Branca. E para que não haja dúvidas adianta de imediato os interlocutores do processo: o procurador geral e o seu advogado pessoal. Isto é, nada mais nada menos, que usar um instrumento da política externa do Estado em proveito pessoal na luta política interna. Não é um simples acto de corrupção, é um abuso de poder e uma violação grave do Estado de Direito com consequências sobre a segurança nacional.

É por isso que no caso da Rússia os democratas se dividiram e a speaker da Câmara Nancy Pelosi resistiu até ao fim e agora houve quase unanimidade entre os democratas (223 em 235 apoiam o impeachment) e Pelosi declarou logo a abertura do inquérito. Quer isto dizer que este é um processo sem riscos? Não, muito pelo contrário. Segundo uma sondagem recente (Politico) 43% da opinião pública americana é favorável ao impeachment. Mas Trump é exímio na estratégia de vitimização e numa sociedade completamente polarizada poderá até vir a favorecer a sua reeleição. Tudo vai depender da estratégia da narrativa democrata. E se, aos olhos da opinião pública, o impeachment será visto como uma mera manobra partidária ou como uma questão de interesse nacional. Sendo um processo político, tudo se passa no Congresso. Passará certamente na Câmara dos Representantes onde os democratas têm a maioria. O mesmo não acontece no Senado, onde os republicanos dominam e onde para além disso será necessária uma maioria reforçada. Historicamente, aliás, nunca um processo de impeachment levou à destituição do presidente. O desfecho é por isso incerto e provavelmente terá o mesmo destino dos anteriores. Mas há ainda questões de princípio na democracia americana que um tal processo não deixará de marcar.

Trump tem vindo a subverter o funcionamento da democracia, das regras formais do sistema e das regras informais da cultura política. O ataque sistemático às instituições que ele próprio tutela - as polícias, os serviços de inteligência, as agências federais - o confronto permanente com os media sempre acusados de inimigos do povo; o ataque aos tribunais e, depois da vitória democrata na Câmara dos Representantes, a recusa de toda e qualquer forma de controlo parlamentar. É como se o poder executivo se regesse por regras diferentes do legislativo e do judicial. E se a isto a acrescentarmos o desrespeito pelos limites da contenção e pela legitimidade dos adversários, então é claro o seu objectivo: o ataque ao sistema dos checks and balances característico da democracia americana e a erosão do Estado de Direito. Mas este impeachment não é como os outros.

Nos casos anteriores, Johnson foi acusado por ter demitido o secretario da defesa sem ouvir o congresso, Nixon por ter espiado os seus rivais políticos e Clinton por ter um “affaire” com uma estagiária da Casa Branca. Foram sempre questões de mera política interna. Nunca esteve em causa o Estado de Direito e muito menos a segurança nacional. Com Trump, pelo contrário, não só estão em causa as regras da democracia como envolve uma questão de segurança. Esta é uma questão de política externa que pode ter reflexo na segurança internacional. É que não só o Presidente condiciona a ajuda militar à Ucrânia a uma contrapartida para perseguir um adversário político na luta eleitoral, como afecta os interesses de segurança europeia e do Ocidente numa região estrategicamente crítica. O resultado final do impeachment pode não levar à destituição do Presidente, mas o seu processo político não deixará de tornar claro que o que está em causa é essencial: a Segurança Internacional, a Democracia e o Estado de Direito.

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