Este museu de Ovar é uma escola. Uma viagem ao ensino de 1910

No início de mais um ano lectivo, há uma experiência intergeracional que se impõe: a visita ao novo Museu Escolar Oliveira Lopes, em Válega, para uma viagem no tempo até ao início do século XX, quando a fortuna de dois emigrantes portugueses financiou o que era então uma escola de luxo numa pequena comunidade rural.

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Goncalo Dias
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Ainda hoje Válega tem um ritmo diferente. Nesta vila do município de Ovar, a maior parte dos seus quase 27 quilómetros quadrados é dedicada à agricultura e pecuária, e não se notam grandes pressas nas ruas do centro da freguesia, mesmo ao lado da EN 109. A vida parece ser pacata, encontra-se pouca gente ao caminho porque os que trabalham no território andam na lida do campo e, em dias de maior vento, nota-se no ar até algum cheiro de vacarias – o que, não sendo muito simpático, é compensado pela hospitalidade com que os proprietários dessas explorações agro-pecuárias se deixam ser visitados por crianças (e adultos) que nunca viram animais da quinta ao vivo nem lhes sentiram o pêlo macio.

Concentrada nas suas labutas, a vila pode só fazer título de jornais quando acolhe protestos públicos por parte dos lavradores da região, mas sempre teve particular brio no seu património e já antes atraía forasteiros a dois marcos da cultura local: uma corrida humorística em que as equipas disputam provas em contra-relógio sobre camas rolantes e, com maior seriedade, uma igreja cuja fachada impressiona mesmo os mais indiferentes dada a sua rara composição figurativa em azulejo de várias e vibrantes cores. A novidade é que, a esse e outro património, se junta agora a materialização de uma das histórias mais interessantes da terra: o Museu Escolar Oliveira Lopes, que reúne espólio do estabelecimento de ensino fundado por dois irmãos locais cuja generosidade marcou diferentes gerações de estudantes do 1.º ciclo e cujo legado constitui hoje uma memória partilhada por centenas de famílias locais.

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Tudo isso se deve a José e Manoel Oliveira Lopes (1850-1924 e 1868-1936), dois cidadãos locais que, tendo nascido numa família de lavradores já de si abastada, ainda assim, em meados do século XIX, rumaram a melhor vida no Brasil e acabariam por fazer fortuna no Rio de Janeiro com o comércio de cereais. Apoiar o desenvolvimento da terra natal torna-se uma missão filantrópica acarinhada por ambos e, de regresso a Válega quase 50 anos depois, numa altura em que a taxa de analfabetismo atingia quase 75% da população, a aposta foi no valor maior da educação: os dois irmãos acabariam por financiar a construção de uma escola primária com uma ala própria para o ensino de meninas, outra para o de meninos e ainda uma terceira com residências individuais para cada professor.

O edifício foi inaugurado a 2 de Outubro de 1910 com pompa, torneio de tiros e até um banquete com menu em francês, num ambiente que beneficiaria do optimismo que a revolução iniciada nesse mesmo dia transmitia aos irmãos Oliveira Lopes, convictos republicanos que, três dias depois, se despediam da monarquia constitucional e viam implantar-se no país o ambicionado novo regime de soberania. A festa de lançamento terá assim ajudado à aura de grandeza que ajudou a manter a escola como um dos edifícios mais marcantes da freguesia.

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Por fora, exibe uma traça imponente rasgada por janelas altas e azulejos discretos da antiga Fábrica de Cerâmica das Devesas; no interior, mobiliário de luxo para a época inaugural e materiais pedagógicos como os então utilizados nos colégios da elite francesa. No mesmo terreno, mas algo recuado para ajudar a demarcar o espaço de recreio onde se brincava à sombra durante a tarde, também o edifício mais tardio da cantina, que resultou de contributos de um sobrinho dos Oliveira Lopes e de outro benemérito local, proporcionando a muitos alunos dos anos 1950 a única refeição quente do dia e em 2019 transformado num pólo da Biblioteca de Ovar.

Adaptando-se a todas as mudanças de ensino operadas em 114 anos, a Escola Oliveira Lopes foi reunindo um considerável espólio que a sensibilidade de um professor permitiu preservar: Joaquim de Almeida e Pinho guardou mobiliário, livros, materiais e tudo o mais que considerou um testemunho da evolução do sistema educativo em Portugal e em 1996 reuniu parte desse acervo numa sala especial que, em paralelo à actividade normal da escola, funcionava como cápsula do tempo expositiva, sempre aberta ao público que aí quisesse avivar a memória de aulas passadas. Quando as últimas turmas do edifício criado pelos irmãos Oliveira Lopes foram transferidas para um novo centro escolar, em 2014, surgiu então a oportunidade de transformar devidamente o imóvel que, sendo propriedade municipal, foi sujeito pela Câmara e pelos arquitectos do Atelier 405 a trabalhos de um milhão de euros apostados em relançá-lo como museu formal – de acordo com os requisitos legais para o efeito e para satisfação de uma comunidade de antigos alunos particularmente orgulhosa da sua passagem por um local com tamanho legado.

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"Os Lusíadas", numa edição de 1880

Dos sólidos geométricos à palmatória

A reabertura deu-se no final de Julho de 2019 e, se não fosse pela fachada, o espaço quase não se reconheceria. Tudo aí hoje é moderno e sofisticado, com o museu a dispor os seus itens mais antigos com uma formalidade contemporânea que lembra apenas boa organização caseira, envolvida de um certo aconchego. O timbre modernidade-gratidão marca-se logo à entrada: os retratos de José e Manoel captam o primeiro olhar como se impõe para com quem merece o elogio maior e, ao lado, uma parede de lousa apresenta-se decorada por fotos de antigos alunos e rabiscada com o giz das suas assinaturas. No dia desta visita, identifica-se por lá o Nuno Joel Magina, a Zuleica Anjos, a Faustina e a Eufrásia. Mas a directora do museu, Raquel Elvas, diz que a ideia é “ir substituindo as fotos e os nomes ao longo do tempo”, para se ir renovando o pseudolivro de curso sem se cair num excesso pouco compatível com bom gosto decorativo.

Depois do foyer, inicia-se então a viagem, sempre mais rica quando guiada por um técnico que saiba acrescentar aos objectos as suas histórias não legendadas. O centro de documentação, por exemplo, reúne publicações que integraram os programas da Escola Oliveira Lopes, como uma edição de 1880 de Os Lusíadas, e também livros de ponto, facturas de bens alimentícios e materiais pedagógicos de outros estabelecimentos do concelho, estando todo esse acervo “disponível a visitantes que requisitem a sua consulta técnica”.

Seguem-se depois pequenos quartos que, envidraçados ou não, funcionam como salas de reserva visitáveis, resguardando colecções como as de mobiliário obsoleto quase kitsch (como lavatórios portáteis de ferro fundido e escarradores), jogos e fichas pedagógicos sobre temas diversos (como monumentos, flores, corpo humano, trajes regionais ou animais selvagens), serviços de mesa da metalúrgica Alba em alumínio pesado (como cafeteiras para uns 20 litros de leite e malgas para uns 500 mililitros de sopa), materiais de escrita (como canetas de aparo, tinteiros e carimbos) e objectos de complemento às chamadas “Lições de Coisas” (como mapas em relevo, sólidos geométricos e quadros ilustrando os valores promovidos por Salazar, inclusive os que contavam a História de Portugal com textos de Carlos Franco e João Soares, pai do histórico socialista Mário Soares, e ilustrações de Roque Gameiro e Alberto Sousa).

No piso térreo do museu ainda se espreita uma sala com mobiliário de mogno e armários repletos de curiosidades, assim como a cafetaria que intercala mesas de linhas actuais com outras de madeira colorida e bancos pequeninos a pedir uso por crianças. Mas é o primeiro andar que mais impressiona, primeiro com o seu imaculado auditório de tecto curvo a invocar as ossadas de uma baleia ou o casco invertido de um barco, e depois, spoiler alert!, com a sala de exposição permanente com um quadro de lousa de duas faces rotativas para agilização da aula, um globo terrestre giratório da marca francesa Forest, kits de pesos e medidas, um ábaco Albino de Mattos, escrivaninhas de tampo ergonómicas para ajuste regulado à estatura do aluno e paredes integralmente forradas com painéis rica e cuidadosamente ilustrados com ensinamentos sobre as mais variadas temáticas. Não fosse pela palmatória de madeira perfurada sobre a secretária do professor e quase não se acreditaria que materiais tão atentos ao bem-estar físico e ao desenvolvimento intelectual das crianças têm mais de 100 anos.

Apreciando em detalhe os painéis dispostos por todo o pé direito da sala, percebe-se então por que é que tanta gente ainda diz que “a quarta classe de antigamente era quase um curso secundário inteiro” – com a desvantagem de lanches menos fartos, é certo, mas, como nota Raquel Elvas, com a benesse de “muito mais tempo para brincar”. Nessas telas com traduções brasileiras dos painéis pedagógicos da celebrada marca Deyrolle, está muito do conhecimento empírico que assegura o fluir do quotidiano e que tantas vezes passa despercebido: uns quadros identificam espécies de insectos, mamíferos ou plantas; outros revelam os músculos humanos ou o percurso da circulação sanguínea; há ainda os que listam os princípios de Física envolvidos na acção de uma locomotiva, na iluminação a gás, na cozedura do barro ou na propagação acústica; e há até os que explicam como se produz o “assucar”, como se distinguem ovos de diferentes aves ou que plantas têm aplicação na tinturaria para vestuário.

Tudo ali evoca o que a directora do museu define como “uma sala de aula dos tempos da Primeira República” e nos faz desejar voltar à escola outra vez. Novos ou velhos, damos por nós a querer regressar àquelas carteiras de tampo para aprender com mais vontade, para ficar a saber mais e melhor, para iniciar outro rumo de vida, testar como ela correria à segunda tentativa… Se pudéssemos regressar ao passado com a vantagem do conhecimento adquirido, agora saberíamos que ninguém nos estava a enganar quando dizia que aqueles eram mesmo os melhores anos da nossa vida. Agora saberíamos como era uma asneira toda aquela pressa de crescer.

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