O próximo “Trump bom”

“Muitas pessoas vão seguramente respirar de alívio por Trump abraçar a diplomacia. Mas, com Trump, as coisas nunca são simples nem fáceis de entender”.

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epa/ERIK S. LESSER
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O despedimento sumário de John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional, um acto tipicamente trumpiano no método e na forma (o tweet), imediatamente suscitou expectativas sobre uma viragem na política externa norte-americana. Por outro lado, pôs termo a um equívoco, a confusão entre a lógica do “America First”, de Donald Trump, e o intervencionismo imperial dos neoconservadores que marcaram a era George W. Bush e de que Bolton terá sido a derradeira encarnação.

A expectativa de viragem foi sintetizada pelo analista Thomas Wright, da Brookings Institution, no magazine The Atlantic. “Trump quer escrever um novo capítulo, encerrando o denominado [a fase] ‘Militarismo e Máxima Pressão’ e abrindo outra denominada ‘Fazer Acordos e Perseguir o Prémio Nobel da Paz’”. Passa da ironia ao resumo: “Ele quer uma cimeira com os líderes do Irão e acordos com os Taliban, com Kim Jong-un e com Vladimir Putin sobre o controlo de armamentos. Não se preocupa com a maioria dos detalhes desde que o crédito lhe seja atribuído.”

Os altos funcionários não estarão entusiasmados com tal viragem mas, assegura Wright, aceitarão aplicá-la. Bolton é que não a podia aceitar. “Todos concordam que a viragem de Trump é real. Estamos a entrar numa nova fase. Trump sempre teve duas imagens de si mesmo em matéria de segurança nacional – enquanto militarista e enquanto negociador. (…) Desde que não haja uma crise externa, a viragem de Trump definirá a política mundial no próximo ano” – por coincidência, o das eleições presidenciais americanas.

A demissão de Bolton criou muitas expectativas sobre uma aproximação diplomática ao Irão, corroborou a Foreign Policy. Trump calcula estar numa posição de força. Mas estará disposto a baixar a “máxima pressão” que estrangula a economia iraniana? Demitir Bolton foi uma mensagem com elevado peso simbólico. Mas uma negociação tem duas partes. Teerão manifestou a sua relutância em negociar com a Administração Trump, que não lhe merece qualquer confiança. A boa diplomacia é, no entanto, um jogo para criar confiança entre inimigos.

“Do nosso ponto de vista, a partida de Bolton não muda a natureza do confronto dos Estados Unidos com a China e o Irão”, resume uma empresa consultora de energia. E Martin Indick, especialista no Médio Oriente, comentou a demissão de Bolton num conciso tweet: “Como é que Kim, Rouhani, Xi e os taliban interpretarão o desejo de Trump fazer acordos com eles?” E que pensarão amigos de Bolton como o israelita Netanyahu ou o saudita Mohammed bin Salman?

“America First”

O lema “America First”, de Trump, não é um decalque do unilateralismo da era George W. Bush. Na campanha eleitoral, Trump condenou o intervencionismo e o internacionalismo dos neoconservadores, que levaram a guerras no Afeganistão e no Iraque. “America First” significou, desde início, uma postura unilateralista mas, sobretudo, isolacionista. Os Estados Unidos deixariam de ser os “polícias do planeta”, entregue à sua sorte.

Os neoconservadores partilhavam uma “ilusão de império”, explicou o americano G. John Ikenberry. Pensavam: “Pela primeira vez na era moderna, o mais poderoso Estado do mundo pode agir no plano global sem os constrangimentos das outras grandes potências. Entrámos na era unipolar americana”. A América governaria o mundo.

Trump não partilha deste optimismo internacionalista. Escreveu The Guardian: “'America First’ significa que a América é superior aos outros, mais rica e mais poderosa, e que a riqueza e o poder devem ser utilizados para conquistar mais riqueza e mais poder, que devem ser usados para vencer, com ou sem aliados. E o poder serve para pressionar ou punir – por exemplo, para impor taxas ou rasgar tratados – ou, pelo menos, para ameaçar outros que não se queiram resignar.”

Outra coisa são as contraditórias fases da política externa de Trump. Alguns analistas referem duas. Na primeira, até fins de 2017, Trump inventou uma linguagem política particularmente agressiva e “militarizada”, acentuou o isolacionismo, pondo em causa as alianças, a começar pela NATO e a acabar no abandono da Parceria Transpacífico, na Ásia. Na segunda fase, acentuou o unilateralismo. Apostou na imposição de taxas aduaneiras a rivais e aliados, denunciou o acordo nuclear com o Irão e encenou o espectáculo da sua cimeira com Kim Jong-un, em Singapura.

Em 2018, abandonam os cargos o secretário de Estado Rex Tillerson, o conselheiro de Segurança Nacional general H. McMaster, e mais tarde o secretário da Defesa, general James Mattis, que fez da sua carta de demissão um requisitório contra a irresponsabilidade de Trump perante as alianças: uma ordem internacional favorável aos interesses americanos depende da coesão dos aliados. A McMaster, sucedeu Bolton – depois de prometer a Trump que não o arrastaria para uma guerra. Perante o agravamento do conflito comercial com a China, Washington começa a repensar a importância das alianças.

As eleições no horizonte

A possível viragem de Trump obedecerá a várias ordens de razões. Em primeiro lugar, o conflito com a China é o mais complexo e difícil de tratar. Para o enfrentar, Trump precisa de amortecer outros conflitos. Em segundo lugar, a realidade resiste às suas investidas. O Irão, que parece estar no horizonte da Casa Branca, é um bom exemplo. A política de “pressão máxima” criou um “atoleiro estratégico”, escreveu a analista americana Suzanne Maloney. “A ‘pressão máxima’ provou ser insuficiente para provocar o colapso ou a capitulação [do Irão]. Nem Washington nem Teerão podem prevalecer unilateralmente, ou inequivocamente, e as estratégias de ambas as partes levantam graves riscos ao seu adversário.”

Por fim, já foi dado o tiro de partida para as eleições de Novembro. Trump quer “tirar o tapete” aos democratas. Uma viragem na política externa, trocando a sua imagem de destruidor de tratados pela de promotor de acordos, seria uma arma aliciante. A moeda tem, no entanto, outra face. À medida que o voto se aproxime e suba a urgência de obter deals, maior pode ser o preço a pagar. Tudo depende da percepção dos rivais e dos aliados. Pode levar a maus ou irrisórios negócios.

No seu artigo, Thomas Wright conclui com uma advertência. “Muitas pessoas vão seguramente respirar de alívio por Trump abraçar a diplomacia. Mas, com Trump, as coisas nunca são simples nem fáceis de entender. O seu foco nos benefícios políticos da negociação e o seu egocêntrico desejo de ser visto como um extraordinário negociador podem desfazer o seu projecto, reactivando as crises que espera evitar.”

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