Cabeças descartáveis

Ver jovens promissores integrados nas listas eleitorais seria magnífico. Mas encontrá-los como cabeças de lista constitui objectiva falta de respeito pelo eleitorado, a quem assiste o direito de ser representado, em primeira linha, por personalidades reconhecidas.

Já não terei idade para me surpreender com muitas coisas, mas ainda sou tomada de espanto por algumas. Admitia uma derrapagem incómoda para o PSD até às legislativas e concedo que é muito difícil recuperar dos resultados eleitorais autárquicos desastrosos e da estratégia que os ditou.

O que não me passava pela ideia era que a reacção à dificuldade fosse uma tremenda falta de respeito por quem vota.

Mas foi o que resultou da insólita escolha dos cabeças de lista à Assembleia da República.

A Rui Rio, austero, rigoroso, que sempre considerei e a quem reconheço méritos, agoirava solidez no momento delicado da elaboração das listas.

Na aparente solidão política pela qual optou, Rui Rio, o planeador meticuloso, deixou-se transformar em Rui Rio, o criativo desastrado.

Inovou na estratégia de escolha de candidatos e inovou mal.

Colocou como cabeças de lista “novos”, desconhecidos da maioria das pessoas. Até deu o exemplo. Ele, o presidente do PSD, que afirma querer disputar a chefia do Governo ao Partido Socialista, não é cabeça da lista do Porto, o círculo pelo qual concorre. Deu esse lugar a um jovem. É o número dois do rapaz.

Não ser o presidente do PSD cabeça de lista do seu círculo eleitoral é lastimável.

Rui Rio é natural do Porto, foi deputado pelo Porto e presidente da Câmara Municipal do Porto. Tem toda a lógica que se candidate na lista do Porto. Mas, nessa lista, era fundamental que fosse o primeiro. Não o ser fomenta estranheza, perturba a opção dos eleitores.

Pergunta-se: porque não é ele o número um? Não acredita ter chance de vir a ser primeiro-ministro? Pesa-lhe fazer a campanha eleitoral exigentíssima que aí vem? Quer dar o sinal de que, afinal, aceita ser o número dois do Governo que se formará a seguir às eleições?

A questão dos restantes cabeças de lista é igualmente problemática.

Dar lugar a jovens nas listas foi uma decisão boa; mas foi uma decisão péssima quanto ao lugar em que os colocou.

Apresentar novos protagonistas nas listas seria, em princípio, muito salutar.

Portugal está cansado dos ritos da partidocracia na escolha dos candidatos a deputados. Muitos provêm dos confins dos aparelhos partidários, são pessoas de quem nada se sabe e se desconfia que pouco de interessante há para descobrir.

Rui Rio daria um belíssimo sinal aos eleitores de que se demarcava de maus rituais do sistema tradicional integrando nas listas jovens, com currículos vigorosos, em lugares elegíveis.

Era um contributo para combater a cultura antiparlamentar endémica, que o sistema de lista fechada e muito divorciado da sociedade civil favorece.

Mas, precisamente porque o sistema eleitoral se revela nefasto, há regras que não se devem subverter na concretização das escolhas políticas, pois constituem justamente as suas únicas regras claras e as únicas regras que conferem alguma legitimidade substantiva ao sistema existente.

A importância dos cabeças de lista joga aqui uma cartada essencial.

Se os eleitores desconhecem a maioria dos deputados, é determinante que os cabeças de lista tenham notoriedade.

Ver jovens promissores integrados nas listas eleitorais seria magnífico. Mas encontrá-los como cabeças de lista constitui objectiva falta de respeito pelo eleitorado, a quem assiste o direito de ser representado, em primeira linha, por personalidades reconhecidas.

Por outro lado, uma campanha eleitoral impõe-se estruturada e esclarecedora. Não apostar forte nesse sentido é desconsiderar que quem vota tem todo o direito de ser bem informado durante a campanha eleitoral.

Sendo os debates eleitorais intensos e rigorosos, quem os vai fazer eficazmente pelo lado do PSD?

“Novos”, talentosos que sejam, serão lançados a debater com a oposição sénior?

É também desconcertante que Rui Rio não tenha intuído que a iniciativa quanto às primeiras-caras, resultante do seu exercício de autoridade, gera problemas.

As primeiras-caras provavelmente serão menos bem acolhidas pelo PSD que não as escolheu. No primeiríssimo plano em que se encontram, terão o apoio partidário necessário em campanha eleitoral?

Não é mais do que evidente que os jovens cabeças de cartazes não vão ser considerados como pares políticos pela oposição fortíssima, sólida e estruturada, ao PSD, que está no Governo de Portugal?

E serão, depois das eleições, aceites pelo próprio PSD?

Terá Rui Rio esquecido o passado recente? Fernando Nobre, longe de ser um desconhecido, foi trucidado pela circunstância de o partido se não identificar com a escolha que o ditou. Apresentado como símbolo de abertura à sociedade civil, cabeça de lista por Lisboa, e depois, candidato a presidente da Assembleia da República, sofreu derrota estrondosa: nem o pleno dos deputados do PSD votou nele para liderar o Parlamento.

Provou-se que Fernando Nobre foi um mero cabeça de cartaz rapidamente alijado.

E o mesmo pode acontecer a estas novas cabeças de cartazes. Sem peso político, correm o risco de serem afastadas na primeira oportunidade em que se revelem inconvenientes ou inúteis. Correm o risco de serem afastadas pelo partido, ou mesmo afastadas pelo próprio líder, se for esse o seu interesse.

Em próximas eleições, se desaparecerem das listas, quem lhes vai notar a falta?

Resta reconhecer que são cabeças descartáveis. 

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