Lei de Bases da Habitação: 46 anos de espera, 46 anos de luta!

Este momento, em que vemos finalmente nascer esta Lei, resulta da luta, resiliência e empenho de muita gente.

Apesar do reconhecimento do Direito à Habitação, pela Assembleia Constituinte de 1976, não estavam ainda reunidas as condições para a elaboração e aprovação de uma Lei de Bases da Habitação ou mesmo de um Serviço Nacional de Habitação, à semelhança da área da Saúde que viu o SNS criado em 1979 e a sua Lei de Bases em 1990. Conhecendo a história da Habitação e a situação única do seu primeiro serviço público, o programa SAAL – Serviço Ambulatório de Apoio Local, percebe-se a dificuldade: a mudança era imensa. Passávamos de uma visão assistencialista, do Estado Novo, para uma visão revolucionária de construção colectiva de um direito social, de dar voz às populações e iniciar processos participativos.

A Habitação ficou assim, e durante 46 anos, o único direito fundamental que não tinha aquilo que seria lógico ter: uma Lei de Bases. Aquele que é o documento orientador que define e determina as incumbências e tarefas do Estado na efectiva garantia deste direito fundamental. Esta garantia passa por políticas públicas. Políticas essas que abrangem o sector público, o sector privado e o sector cooperativo.

Vivemos, inequivocamente, uma crise no acesso à Habitação, em particular nas áreas urbanas e periurbanas. É essencial olhar para o Direito à Habitação de forma integrada e transversal. Um olhar moderno. Perceber a raiz da questão: décadas de falta de investimento por parte do Estado e uma crescente onda de sobreaquecimento do mercado, resultante de um conjunto de factores sobejamente conhecidos –​ Vistos Gold, Regime Fiscal para o Residente Não Habitual, crescimento não controlado de Alojamento Local, etc. Por isso há que abordar a questão de forma estrutural e estruturada. É precisamente isso que esta Lei de Bases da Habitação, agora aprovada pela Assembleia da República, faz.

Trata-se de uma lei que consagra a universalidade do direito à habitação condigna para todas as pessoas, clarificando assim que não se trata de um instrumento para regular a habitação pública ou a habitação social.

Um documento que olha para a Habitação como um direito, e não como um bem ou um ativo financeiro. De forma transversal e abrangente, convocando os vários sectores que devem contribuir para que a execução das políticas públicas resulte, contemplando a necessidade de conjugação de vários instrumentos e legislação, como são os instrumentos de gestão territorial, reabilitação urbana ou mesmo a política de solos, passando pela regulação do mercado habitacional. Aborda também a essencial noção da função social da propriedade, que não é mais do que o uso efetivo de uma habitação para esse mesmo fim. Evidentemente que o Estado deve prioritariamente garantir que a sua propriedade concorra para este objectivo. Mas não podemos excluir a função social da propriedade privada.

Uma Lei que invoca o direito à morada e ao lugar; que olha para a Habitação muito para além da casa. Para o habitat, que inclua uma rede de transportes que garanta coesão territorial, rede de equipamentos de saúde, de educação, de lazer. Só assim teremos comunidade, só assim teremos coesão territorial e social. Esta Lei é clara quanto à proteção da morada permanente e quanto à necessidade de haver mecanismos de equilíbrio e justiça. Por isso assume discriminação positiva para camadas ou grupos especialmente vulneráveis, como os idosos ou as famílias monoparentais.

Esta Lei identifica claramente quais as responsabilidades do Estado, políticas nacionais, regionais e locais, bem como um Programa Nacional de Habitação. Esta questão é de grande relevância. Se fizermos uma análise dos últimos 46 anos facilmente percebemos que têm sido essencialmente os municípios a assumir a resposta em matéria de política pública de habitação e provisão da mesma. Não havendo qualquer dúvida sobre a vontade dos municípios em cumprir esse desígnio constitucional, é benéfico para todos que, respeitando o princípio da subsidiariedade e autonomia das autarquias Locais, a Política Nacional de Habitação seja um responsabilidade e competência do Estado Central. Só assim poderá haver garantia dos princípios da igualdade e equidade para todo o território nacional. Por outro lado, é também desta forma que o compromisso de investimento na Habitação deverá ficar consagrado, tendo expressão em sede do Orçamento do Estado.

"A sede de uma espera só se estanca na torrente.”

Não se chega até aqui a sós. Este momento, em que vemos finalmente nascer esta Lei, resulta da luta, resiliência e empenho de muita gente. Das populações e comunidades. Das associações de moradores, dos movimentos sociais. De pessoas lutadoras e empenhadas que sabem o sabor da palavra colectivo. Da vontade política, naturalmente. Bem, claramente, mais de uns do que de outros.

E, como já disse, de pessoas. A quem importa o bem-estar das suas concidadãs e concidadãos. Por isso, agradeço a todas. Mas quero de forma muito pessoal agradecer à Helena Roseta. À cidadã e à deputada. Por tantos e tantos anos de luta e resiliência até chegarmos aqui! À deputada Paula Santos agradecer igualmente a dedicação e disponibilidade. E ao deputado Pedro Soares, que não deu trégua enquanto não viu esta raiz bem firmada, enquanto não viu este dia feliz chegar.

Esta é uma Lei de Bases que recupera o princípio da participação das populações, das associações de moradores, do movimento cooperativo. Em suma, da convocação e responsabilização de todos os sectores para a construção do Direito à Habitação. Merece uma leitura atenta e cuidada. Das suas várias camadas. Segue-se por isso uma fase de consolidação do documento na sua operacionalidade.

Mas podemos dizer com satisfação, alegria e até emoção que este rio finalmente desaguou!

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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