De novo a Matemática. Matemática sempre

Pensar que é com exames que os problemas se resolvem e que, no caso em questão, o requisito de tal exame constitui uma concretização adequada da preocupação com a qualificação dos professores dos primeiros anos, é um pensar simplista.

Gosto de me recordar porque gosto de Matemática, porque escolhi estudar Matemática e porque permaneço no gosto de ensinar Matemática. Recordo, muito pequena, os dois grandes espelhos colocados em paredes frontais do café do meu pai — o meu pai, que nos ensinou o cálculo mental, ele que só tinha a 4.ª classe mas que lia muito e se interessava por saberes diversos, e que por isso mesmo nos ensinou o valor do estudo e do conhecimento; também o valor da escola pública (“as minhas filhas vão para a escola de todos”, argumentava quando o questionavam porque íamos de elétrico todos os dias do Marquês portuense para a Ramada Alta, havendo tão bons colégios na nossa zona de residência). Esses espelhos deram-me a primeira imagem e a primeira inquietação do infinito.

Ao longo dos anos identifiquei-me com o que aprendi com muitos mestres, e distanciei-me de argumentos que entendi ferirem o âmago das minhas convicções mais profundas. Às vezes mudei de opinião; quase sempre me reforcei nas crenças sobre a Educação que me formaram e me deram identidade. Recordo aquela introdução emocionada e emocionante de Maria Rosa Colaço ao seu livro A Criança e a Vida ou textos de Hannah Arendt (a educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo), de María Zambrano que sublinha o papel do professor como um mediador pessoal capaz de fazer surgir perguntas nos seus alunos e capaz de possibilitar que os seus alunos se questionem eles próprios, de Gabriela Mistral, de Sebastião da Gama, que enchiam a minha opção educativa de significado e sentido. Aprecio o debate de ideias e entendo que a minha geração deve sentir-se responsável pelos valores da democracia e da liberdade que ajudámos a construir e que nos construíram também, e que deve aprender muitas outras coisas com as novas gerações, procurando o discernimento para uma síntese permanente entre a herança cultural de que somos responsáveis, e os desafios que o tempo presente sempre nos coloca.

A Matemática, por outro lado, ensinou-me também muito e por isso gosto tanto de a estudar e ensinar. Como dizia o matemático Miguel de Guzmán, a tarefa matemática é uma atividade polivalente, muito mais rica que o comum das gentes imagina, e possui muitas vertentes. Há nela um passo contínuo do caos ao cosmos, mediante um processo de simbolização e raciocínio. (...) A atividade matemática implica uma dedicação ao estudo e uma prática que torna as pessoas melhores. A Matemática transmite um forte sentido da realidade e impõe a modéstia e a sobriedade de pensamento. Efetivamente sabemos que não podemos enganar ninguém. Por isso, reconheço, me é tão difícil, nesse exercício de diálogo e debate, fazê-lo assente em enviesamento de informação, em afirmações não sustentadas, em argumentos falaciosos e falsidades, em falta de humildade e sobranceria (quando não, grosseria). Porque, infelizmente, com a Matemática, até pelo peso real e simbólico que possui, se engana hoje muita gente. Também sobre isso Guzmán nos alertou: a Matemática provocou nos matemáticos uns quantos defeitos importantes: uma certa prepotência (...), a incapacidade ou a intolerância para a ambiguidade consubstancial ao ser humano (...), a vocação de simplificar que converte os matemáticos em autênticos simplistas, seres agachados, caprichosos e simples no pior sentido da palavra. Por último, o pensamento único, que é quase equivalente a uma só ideia. A luz e a sua sombra, como em tudo na vida. Cabe-nos a nós cuidar a luz e estar vigilantes sobre as sombras que provoca.

E a que vêm estas considerações? À importância que, sobretudo por estes dias em que os exames marcam a agenda da educação, se traz a Matemática ao debate, infelizmente ao mau debate pelas razões que invoquei. Algumas das coisas escritas ultimamente (muitas vezes neste jornal) não merecem comentários, por isso as ignoro; sobre outras, e concedendo o benefício da dúvida a quem as invoca por ignorância dos factos em debate, tenho dúvidas se valerá a pena esclarecer muito, porque parece haver uma dificuldade generalizada em seguir um raciocínio limpo (sim, a Matemática faz muita falta); mas há outras que me exigem, pelo menos, a apresentação de uma outra visão para que se possam confrontar argumentos e fazer justiça a quantos (muitos), atónitos, se têm sentido, no mínimo, indignados.

Hoje quero refletir aqui um pouco sobre o tema... exames. Em Portugal existem exames (ou provas) nacionais para conclusão de ciclo no final do ensino básico a Português e a Matemática e no final do ensino secundário à maior parte das disciplinas dos cursos Científico-Humanísticos, sendo que muitos destes são também utilizados como exames de acesso ao ensino superior. A função destas provas de conclusão de um ciclo de estudos é sobretudo certificadora e, nesse sentido, deverá fazer justiça ao trabalho que alunos e professores desenvolvem na sala de aula à luz das referências curriculares em vigor. Cumpre também um papel regulador apontando para desempenhos expectáveis a nível nacional consubstanciados em aprendizagens essenciais. Mas, sobretudo no ensino secundário e sobretudo com a Matemática A, eles têm servido fundamentalmente propósitos de seleção — feroz seleção, entendo eu — dos alunos nas suas candidaturas ao ensino superior; há uma crescente e legítima preocupação com o efeito perverso que este processo seletivo exerce sobre o ensino secundário que, recorde-se, é ensino obrigatório, o que quer dizer que nos responsabiliza por todos, todos e cada um dos alunos que, felizmente, “obrigamos” a estar na escola.

Existe um certo olhar sobre o papel e valor dos exames que, a par de uma grande ignorância sobre as diferentes matemáticas no ensino secundário, leva a considerar um exame como condição de garantia das aprendizagens dos alunos, sejam eles candidatos a Engenharia Aeroespacial, a Medicina, a Economia, a Matemática, a Biologia, ou a Professor de Educação Básica. Em relação a este último caso — e ao que se tem dito em torno de um conjunto de recomendações sobre a qualificação e valorização de educadores e professores, elaborado no âmbito de uma das comissões especializadas do Conselho Nacional de Educação, e aprovado por este Conselho (com um voto contra e uma abstenção, convém esclarecer, a bem do rigor) —, talvez seja bom recordar que no ensino secundário há três exames nacionais de Matemática possíveis: de Matemática A, de Matemática B e de Matemática Aplicada às Ciências Sociais (MACS). A Matemática A é uma disciplina obrigatória dos Cursos de Ciências e Tecnologias e Ciências Socioeconómicas, a Matemática B é uma disciplina de opção do Curso de Artes e MACS é uma disciplina de opção do curso de Língua e Humanidades. Para além destes quatro cursos Científico-Humanísticos, temos ainda toda a gama de Cursos Profissionais e Artísticos Especializados, muitos deles com disciplinas de Matemática (que podem ser, ou não, de opção) para os quais não há exame nacional.

Os alunos que eventualmente frequentarem estes cursos tiveram preparação matemática diferente daquela que é avaliada em qualquer dos três exames referidos — para quê fazer prestação nestes exames e o que mostram eles? E porque é que os alunos das humanidades ou das artes serão piores candidatos a professores dos primeiros anos? Acresce que não é garantido que alunos com um exame de 12.º ano de Matemática possuam mais conhecimento matemático relevante para ensinar crianças até aos 12 anos de idade. O que estes alunos aprendem no ensino secundário nas disciplinas com exame nacional não é a Matemática que têm que aprofundar a nível superior para serem futuros professores dos primeiros anos. Não será assim mais apropriado que as instituições de formação de professores para os primeiros anos prevejam, nos planos dos seus cursos, o aprofundamento a nível superior da Matemática que hão de ensinar aos alunos no ensino básico (há países na Europa em que isto já acontece, na Holanda ou na Bélgica, por exemplo)?

Exigir o tal exame (uma exigência em vigor há dois anos), na situação descrita, apenas constitui mais um elemento de afastamento, se não de rejeição, quer da Matemática, quer da profissão de professor. Além disso, quem agora rasga as vestes, não mostrou qualquer preocupação em ver extinta uma medida de formação com acompanhamento em contexto de sala de aula que integrou o Plano da Ação para a Matemática e que, essa sim, deu um contributo decisivo na formação matemática dos professores dos primeiros anos, como se deu nota em relatórios sobre este plano.

Os problemas de aprendizagem (e de ensino) já há muito estariam resolvidos se os exames fossem solução. Exige-se, e devemo-nos exigir, encarar esses problemas na sua diversidade e complexidade, e procurar e propor soluções apropriadas a essa mesma complexidade e diversidade. Soluções, sabemos bem, nunca definitivas, nem universais, que é sempre preciso corrigir, aprofundar, ajustar, mas que, com esta preocupação e cuidado, podem ser bem mais capazes de corresponder a uma melhor formação das crianças e jovens e a uma melhor qualificação dos professores.

Pensar que é com exames que os problemas — estes problemas — se resolvem e que, no caso em questão, o requisito de tal exame constitui uma concretização adequada da preocupação com a qualificação dos professores dos primeiros anos, é um pensar simplista, bem revelador da ausência de um conhecimento do que efetivamente carece essa qualificação. Mas há arautos da exigência que descuram esse conhecimento, facilitam na análise e, mais ainda, na solução.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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