Abstenção: entre os deveres e o sacrifício

Se muitos vão trocar a praia ou a patuscada pelo direito de votar é porque preferem essa forma de ser videirinha que tende a considerar os assuntos nacionais como um problema que não é deles. Não merecem a nossa condescendência.

O Presidente da República não resistiu aos apelos generalizados que rogavam aos cidadãos para votarem nas eleições de hoje e lançou um sentido e empenhado repto aos portugueses. Aplaude-se a iniciativa, nem tanto o seu discurso de sensibilização, como se em causa o chefe do Estado estivesse a pedir um favor. Mais do que “um sacrifício”, votar é um dever cívico; mais do que deixar nas mãos de um quarto ou de um terço dos portugueses uma decisão importante para o futuro, a abstenção é um ataque à vitalidade da democracia portuguesa.

A abstenção, em Portugal, é também ela um direito que assiste a qualquer um, mas, mesmo que implique uma atitude de desdém sobre a política e os políticos, ainda que exprima desconhecimento e incapacidade de entender realidades complexas como a da Europa, ausência de vontade ou simplesmente a demissão deliberada revelam “um erro” imperdoável. Não estando em causa a apologia do voto obrigatório, que existe em muitas democracias, e que em 2014 foi defendido por Marcelo Rebelo de Sousa, sobra ainda assim na abstenção uma demissão cívica que merece ser censurada.

Haver uma ampla maioria de cidadãos que não conhece o nome de nenhum dos candidatos é uma parte dessa atitude demissionária. Podemos aqui atribuir culpas à campanha indigente e boçal a que assistimos, é justo que se questione a forma como os jornais e as televisões fizeram a cobertura da campanha, mas é igualmente inegável que este distanciamento representa uma forma muito lamentável de ser português. O comportamento do treinador de bancada, o crítico sistemático de tudo e todos, os que se gabam de fugir aos impostos são outros tristes exemplos dessa atitude.

Criticar o abstencionismo crónico e deliberado torna-se assim justo e compreensível. Pode não dar resultados, mas é mais verdadeiro e responsabilizante. Não votar sem causa justa é fugir a uma responsabilidade social. Ponto.

Mas não basta apontar o dedo. Limpar os cadernos eleitorais, por exemplo, é tarefa que devia ter sido feita e actualizada há muito. Instalar o sistema de voto electrónico tornaria simples o acto de votar. Os políticos e quem governa podem fazer muito mais para travar este flagelo. Ainda assim, todos fizeram questão de chamar a atenção para o que está em causa. Se muitos vão trocar a praia ou a patuscada pelo direito de votar é porque preferem essa forma de ser videirinha que tende a considerar os assuntos nacionais como um problema que não é deles. Não merecem a nossa condescendência.

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