Marcelo a fazer leis

Marcelo é um presidente popular por excelentes razões, é lamentável que se transforme num presidente populista por péssimos motivos.

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Estamos a viver um momento histórico em Portugal: nunca nenhum presidente da República esgatafunhou uma lei para a entregar a um primeiro-ministro – que se saiba. O acto de Marcelo Rebelo de Sousa, ao decidir escrever uma proposta sobre as incompatibilidades do Presidente para a depositar nas mãos de António Costa, foi anunciado publicamente pelo próprio. A vantagem de toda esta transparência marcelista esbarra numa desvantagem complicada: o chefe de Estado está a ultrapassar o limite da separação de poderes e está a fazê-lo em público.

Uma coisa, como este Presidente e outros anteriores já fizeram, é levar os poderes até ao limite. Marcelo trata disso sempre que pode. Agora, escrever uma proposta para que o Governo, caso entenda, a aprove já vai muito além daquilo que é politicamente aceitável e, tratando-se de um presidente constitucionalista, mostra uma visão da Constituição enevoada.

Jorge Reis Novais, constitucionalista, diz na edição de hoje do PÚBLICO que o Presidente está “a extravasar” os poderes presidenciais e que a nova situação criada por Marcelo “dá a entender que todos podem legislar, quando, na verdade, há separação de poderes”.

E não, não é normal. Marcelo aparece a cavalgar o chamado “familygate” “fazendo” uma “lei” que proíbe que na Presidência sejam contratados familiares até ao sexto (!!!!!) grau. Eu não sei se o Presidente conhece todos os seus parentes até ao sexto grau – mas, a ser seguida, esta norma obrigaria à contratação pública de especialistas em genealogia.

No caso do familygate há um problema – o circuito fechado em que se movem os detentores do poder e uma endogamia que revolta as pessoas comuns, que continuam a ter salários baixos (porque, apesar da devolução de rendimentos, não foi “virada” toda a austeridade imposta pelo Governo Passos-Portas) e desconsolos vários. A endogamia não é uma originalidade deste Governo: aconteceu com todos. Não será fácil fazer uma lei que acabe com ela (até porque se tem misturado no debate alhos com bugalhos), mas é importante que se avance, pelo menos, para um chuveiro de ética e um módico de pudor no momento de proceder a nomeações.

Mas o Presidente, que começou por desvalorizar o assunto, e depois passou as culpas para Cavaco Silva (que se espalhou ao comprido com a destreza habitual), acaba agora, num impulso de populismo básico, a “fazer” uma lei para o seu órgão de soberania unipessoal. Marcelo é um presidente popular por excelentes razões, é lamentável que se transforme num presidente populista por péssimos motivos.

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