Uma história entre primos no coração do Governo

O que se passou foi feio. Mas mais feio ainda seria o Governo fechar-se numa pose esfíngica, indiferente à pressão da imprensa e alheio à sensibilidade dos cidadãos.

Há duas formas de analisar a demissão do secretário de Estado do Ambiente exactamente um dia depois de o seu primo e seu adjunto se ter demitido na sequência da crise da parentela do Governo. A primeira, bondosa, é que o Governo percebeu que cometeu um erro de principiante ao aceitar a demissão do primo nomeado sem demitir o primo nomeador; a segunda, mais cáustica, dá nota da dificuldade do Governo em lidar com o problema que criou para si mesmo com a proliferação de parentes no Conselho de Ministros.

Num e noutro caso, a virtude do caso está à vista: acabou de vez o tempo em que chamar pelo primo ou pelo adjunto, pela filha ou pela ministra, pelo ministro ou pela esposa deixou de ser a mesma coisa no Governo. A endogamia vai acabar pela mais respeitável das razões democráticas: pela vénia aos valores da República e pelo respeito que a opinião pública tem de merecer ao Governo numa democracia liberal.

Chegados aqui, parece fácil e é fácil apontar o dedo à forma disparatada como o Governo reagiu à notícia do Observador nesta quarta-feira. Quando o Ministério do Ambiente e da Transição Energética considerou que, após a demissão do adjunto do secretário de Estado, “a situação [estava] resolvida”, ficou-se a perceber que não era bem assim. Porque, de imediato, germinou no ar a sensação de que o elo mais fraco da parentela pagava o custo da crise política, enquanto o mandante do “crime”, o secretário de Estado, tentava escapar assobiando para o lado.

Não sabemos se esta atitude foi movida pela arrogância, pela incapacidade de avaliação ou pela ingenuidade. Sabemos, sim, que era óbvio que a permanência do secretário de Estado prejudicava “o Governo, o Partido Socialista e o senhor primeiro-ministro”, como seria reconhecido na carta de demissão.

Por muito que a oposição venha agora celebrar esta importante vitória, ainda que a gestão deste caso mostre um PS e o seu líder longe da sua aguda intuição política, a saída do secretário de Estado num curto período de 24 horas é testemunho da saúde da democracia.

Num país habituado a ver ministros e secretários de Estado alvos de suspeitas ou autores de erros crassos a serem segurados apenas porque quem manda não quer dar parte de fraco, a decisão de Carlos Martins é digna, como é digna a aceitação pelo Governo dessa decisão.

O que se passou foi feio. Mas mais feio ainda seria o Governo fechar-se numa pose esfíngica, indiferente à pressão da imprensa e alheio à sensibilidade dos cidadãos.

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