O tempo não volta atrás

O europeísmo que é preciso agora é um europeísmo que encara de frente o facto de que a centralidade europeia acabou e o tempo não volta para trás.

Não há facto histórico mais relevante neste início de milénio do que o fim da centralidade europeia no mundo. Há um ciclo de mais de 500 anos que se fechou, e isso tem consequências. Esse ciclo foi o tempo em que a Europa subjugou grandes partes, ou mesmo a totalidade, de outros continentes, e o auge desse ciclo de dominação deu-se em 1884, na Conferência de Berlim, quando as potências europeias se davam à suprema arrogância de pegar numa régua e esquadro e dividirem a África entre si. E o fim desse ciclo deu-se quase ontem, na memória viva de muitos de nós, quando as últimas potências coloniais saíram de alguns territórios asiáticos e de quase todo o continente africano. Como digo, esse tempo não volta atrás. E ainda bem.

Quando esse ciclo se fechou, houve um outro que se iniciou — o ciclo europeu. Não é por acaso que a assinatura do Tratado de Roma em 1957 se dá poucos meses depois de a França e o Reino Unido terem partido os dentes na Crise do Suez, nos finais de 1956. Porque foi na Crise do Suez que os europeus finalmente perceberam que o mundo não ia mais andar às suas ordens. E foi a partir daí que alguns políticos de seis países europeus — França, Alemanha, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo — perceberam que só teriam alguma relevância no mundo se trabalhassem em conjunto.

Nem todos o perceberam, porém. Por essa altura, um ministro do governo britânico, em tournée pela América Latina, transmitia uma mensagem inequívoca sobre a União Aduaneira e o Mercado Comum que seriam criados a partir do Tratado de Roma. A mensagem era mais ou menos nestes termos: “não se preocupem, é impossível que seis países europeus consigam entender-se para ter uma política comercial comum.”

Essa atitude está na raiz do chamado euroceticismo: um ceticismo em relação à possibilidade de criar projetos comuns — económicos, sociais e políticos — que transcendam fronteiras entre os estados-nação europeus. Seria fácil apontar para os factos e demonstrar que aquilo que o ministro britânico achava impossível fazer a seis é, por agora, feito a 28. Mas isso seria injusto para o euroceticismo original, que é uma atitude intelectual digna, bastante diferente do registo paranóico da atual eurofobia. O problema desse euroceticismo não está em apontar para as dificuldades do projeto europeu — claro que ele é difícil precisamente porque é inédito. O problema desse euroceticismo está, paradoxalmente, no seu eurocentrismo. No passado como hoje, a atitude eurocética continua a acreditar que o mundo gira à volta da Europa e que está mais ou menos parado no tempo, pelo que as nações europeias podem continuar a entreter-se na recapitulação das suas velhas rivalidades nacionais em vez de construírem um espaço de direito democrático à escala continental que tenha uma palavra a dizer sobre as injustiças da globalização ou os perigos da crise ecológica.

No passado, as classes políticas europeias vendiam às massas a ilusão de que estas estavam destinadas a dominar o resto do mundo ao mesmo tempo que fingiam ignorar como a sua prosperidade e conforto dependiam da pilhagem de recursos naturais e humanos vindos dos outros continentes. Essa arrogância iludida de quem acha que o mundo lhe deve por natureza uma posição hierarquicamente superior ainda persiste no complexo cultural eurocêntrico — muito visível em alguns dos defensores do “Brexit", por exemplo. Só que o tempo em que o mundo parava para ver as guerrinhas entre famílias e nações europeias — ou para participar e morrer nelas — já acabou.

Uma Europa aberta ao futuro tem de começar por ser uma Europa aberta a si mesma e ao resto do mundo. Capaz de avançar numa experiência pioneira de democracia transnacional sem estar sempre a pensar que dantes é que era bom — o que não era verdade a não ser para uma camada muito reduzida da população mundial. E capaz de entender que o resto do mundo não vai ficar parado enquanto a Europa se desentende. E é aí que a mesma arrogância iludida do euroceticismo se casa com a negligência arrogante daqueles a que poderíamos chamar “eurocontinuístas”, ou seja, aqueles que chutam a reforma do euro ou da UE para as calendas porque acham que antes é preciso aprofundar as reformas estruturais neoliberais que vão causar ainda mais descontentamento e polarização entre as sociedades europeias. Ao insistir no caminho do passado recente, essas elites estão a dizer aos europeus que o projeto europeu não pode nada pelos seus países, e que pelo contrário são os seus países que têm de fazer sacrifícios pelo projeto europeu — em vez de ganharem a coragem política para as reformas, essas sim, à escala europeia, que seriam boas para os nossos países e para o mundo.

Por isso o europeísmo que é preciso agora é um europeísmo que encara de frente o facto de que a centralidade europeia acabou e o tempo não volta para trás. Nós é que podemos ficar para trás no nosso tempo. E as gerações futuras não no-lo perdoariam.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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