Feios sim, porcos nem por isso e maus só às vezes

Entre Kurosawa e Chaplin, a comédia italiana e o neo-realismo, esta ficção montada a partir da realidade de um bairro da lata de Osaka é muito séria e completamente desopilante.

Uma espantosa alegria de viver pelo meio das tristezas do quotidiano de gente sem casa: <i>The Kamagasaki Cauldron War</i>
Fotogaleria
Uma espantosa alegria de viver pelo meio das tristezas do quotidiano de gente sem casa: The Kamagasaki Cauldron War
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

O título já diz tudo, ou quase tudo: o que se conta no filme do japonês Leo Sato é a grande guerra entre a população do bairro da lata de Kamagasaki, em Osaka, e o clã mafioso Kamitori, pela posse do kama, um caldeirão ou panela cerimonial familiar onde se coze o arroz e, com saké à mistura, se praticam rituais de passagem de testemunho. Como todas as guerras de bairro, é uma guerra ao mesmo tempo muito séria e inacreditavelmente hilariante, que Leo Sato, com experiência no documentário, conta de maneiras que remetem para os tempos áureos da comédia italiana, do burlesco mudo e do Cinema Novo brasileiro mas também para os clássicos underground do cinema japonês. Imagine-se um Dodes’kaden de Kurosawa que tivesse sido feito por Chaplin ou Ettore Scola, ou uma tragédia neo-realista rosselliniana filmada pelo Oshima dos anos 1960 com piscadelas de olho aos Keystone Kops, e começa-se a ter uma ideia deste objecto inclassificável que venceu o concurso 2018 do Porto/Post/Doc.

Kamagasaki existe verdadeiramente, é verdadeiramente um bairro da lata de Osaka para onde os elementos “indesejáveis” foram sendo empurrados após a Segunda Guerra Mundial; o pano de fundo de The Kamagasaki Cauldron War é a corrupção imobiliária que quer arrasar o bairro. Sato andara já a filmar as reivindicações dos habitantes, em modo documental, antes de se abalançar a esta longa ficcionada, e parte do elenco é composto por habitantes locais colocados em frente à câmara (embora por ali passe nem mais nem menos do que o infame Masao Adachi, cineasta radical tornado activista e terrorista no Japão dos anos 1970). O resultado dos cinco anos de trabalho que Sato dedicou ao projecto, com recurso a crowd-funding e donativos, é esta surpresa que assume as suas fraquezas de filme quase caseiro rodado em 16mm, para melhor fazer valer uma espécie de desfaçatez descomplexada, uma espantosa alegria de viver pelo meio de todas as tristezas que o quotidiano traz a esta gente sem dinheiro nem casa. E fá-lo sem cair nos estereótipos lacrimejantes dos miseráveis condenados à tragédia — porque esta gente não tem tempo nem paciência nem feitio para andar a lamentar-se, o que é preciso é desenrascar-se (e é por aí, e por esse sentido de “humor de rua”, que o filme mais remete para os clássicos do mudo e para o Chaplin que conseguia sempre fazer rir com os manguitos às autoridades e às leis cegas). Eles desenrascam-se, Sato com eles, e The Kamagasaki Cauldron War são duas horas mais do que bem passadas: é um filme vivo, sentido, humano, com gente lá dentro. Não se pode pedir mais.

i-video
Sugerir correcção
Comentar