O que a comunidade internacional está a fazer em Moçambique “não é ajudar, é indemnizar por danos causados”

Os países que mais contribuem para o aquecimento global devem responder pelos estragos causados ao planeta, sobretudo quando atingem os países que menos fizeram por isso, como Moçambique, defende o escritor José Eduardo Agualusa, ao falar sobre a catástrofe do ciclone Idai.

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Agualusa: "O escritor, pelo seu próprio trabalho, é alguém que pensa a realidade" Enric Vives-Rubio/PÚBLICO/Arquivo

O escritor José Eduardo Agualusa esteve na Beira há um mês. É uma escala frequente nas suas viagens de e para a Ilha de Moçambique, onde vive parte do ano. As chuvas já tinham começado e pela primeira vez apercebeu-se de que era uma cidade no meio de um pântano. “Já era a época das chuvas e antes eu não tinha essa percepção da Beira. Mas a Beira é isso, uma cidade construída numa zona pantanosa.” Agora, depois do ciclone Idai, parte da Beira só poderá existir na memória ou na literatura. O escritor angolano defendeu que é preciso preparar um futuro onde é certo que episódios tão ou mais graves que este se irão repetir. Foi em Leipzig, na feira do livro que termina domingo. 

Muitos se interrogaram acerca do silêncio da comunidade internacional sobre a catástrofe do Idai e pediram ajuda. Mia Couto tem sido um dos mais activos. Agualusa também lembrou Moçambique. O que pode um escritor em circunstâncias como esta?
O escritor tem uma voz. A voz do Mia tem um alcance muito grande; tem mais voz do que a esmagadora maioria dos moçambicanos. Ele pode usar essa voz — e é o que está a fazer — para chamar a atenção das pessoas fora do país para a dimensão do desastre. É isso que eu posso tentar fazer também e outros escritores. A posição mais pessimista em relação ao papel público dos escritores é quase sempre dos europeus. É um pessimismo não só em relação aos escritores mas em relação à literatura. E, curiosamente, é na Europa que se lê mais. Nos países onde se lê menos, a percepção é a de que o escritor tem mais importância.

O Mia Couto é uma das principais figuras da sociedade civil em Moçambique, é um herói nacional. Anda na rua e as pessoas reconhecem, cumprimentam, agradecem o papel dele. Alguns escritores conseguem ser uma espécie de reserva moral de um país: são percebidos como pessoas que pensam o país, que lutam pelo país num contexto de grande descrédito dos políticos. O escritor, pelo seu próprio trabalho, é alguém que pensa a realidade. É natural que, tornando-se conhecido, as pessoas o queiram ouvir e é natural que o que ele diz gere discussão.

As notícias falam em 557 mortes e muitos milhares de pessoas a precisar de socorro.
Nenhum de nós tinha a ideia de que teria esta dimensão. Sabia-se que ia haver um ciclone, mas quando a tempestade aconteceu a primeira coisa que caiu foram as comunicações. Só se começou a ter a noção com as declarações do [Presidente Filipe] Nyusi; foi a primeira pessoa a falar em mil mortos. E se podem ser mais de mil mortes percebe-se que a dimensão é extraordinária.

É assustador, sobretudo atendendo às fragilidades de um país que não tem estruturas para enfrentar problemas destes. Quando caem as telecomunicações deixa de haver notícias. As pessoas que estão na Beira não conseguem transmitir o que se está a passar, a cidade fica isolada, não há estradas e é esse isolamento que explica que tenha demorado tanto tempo até se perceber a dimensão do desastre.

Chamou a atenção para a necessidade de se enfrentar o facto de que este não é um episódio singular, que irá repetir-se, e que é preciso que os grandes emissores de gases com efeito de estufa assumam responsabilidades.
Essa é a pior notícia. Não sou eu que digo, este ciclone é resultado do aquecimento global, dizem os especialistas. E é uma coisa que se vai repetir; estamos a entrar, no mundo todo, num tempo novo, que é um tempo de grandes desastres resultantes do desequilíbrio do clima e do ambiente. Em países como Moçambique, e em Angola também, e nos restantes países do Sul, tem de se pensar como viver nesta nova situação; como viver num mundo sujeito a ciclones deste tipo.

Temos de repensar toda a arquitectura, a agricultura, que agricultura podemos ter neste contexto. Na zona da Beira, uma zona de cultivo de arroz, tudo se perdeu. E agora, sabendo que isto se pode repetir amanhã? E que pode acontecer pior?Temos de aprender a viver nesse novo contexto.

Perante situações como esta, há um impulso imediato de escrita?
Eventos como este podem ser tratados literariamente, e são tratados, desde logo porque põem pessoas comuns em situações extraordinárias, e é isso que a literatura faz. Não tenho dúvidas de que acabarão sendo tratados literariamente, não apenas para chamar a atenção para eles, mas também para reflectir sobre a condição humana, que também é o que a literatura faz. Mas uma coisa é escrever um livro que trabalha um determinado tema, outra é o que, como cidadão, posso fazer a cada dia.

Falou da necessidade de iniciar um debate para que esta catástrofe não mereça apenas uma atenção pontual, mas sirva para mudar coisas.
Sim. Seria preciso talvez, seriamente, organizar centros de reflexão, juntando pessoas de todas as áreas científicas e políticas, para pensar como viver neste novo contexto. Estes eventos extremos também acontecem nos Estados Unidos, só que eles estão melhor preparados para os enfrentar, têm muito mais dinheiro, muito mais estruturas.

E isso leva-nos a outra questão: países como Moçambique não contribuíram para o aquecimento global. Não têm indústria, não têm agricultura intensiva, etc. Acho que com países como os EUA ou a China não se põe a questão de ajudar Moçambique; é quase uma indemnização. Esses países têm obrigação de reparar o que fizeram. Moçambique é uma vítima neste contexto, uma vítima absoluta. Isto tem de ser parte da discussão. Não estamos a falar de ajuda. Portugal não faz o favor de ajudar Moçambique. Portugal tem obrigação de reparar os danos que causou. Mas muito mais obrigação tem a China, que até está presente em Moçambique.

E há outra situação: muitos dos projectos com impacto ambiental negativo já não são possíveis na Europa, como certo tipo de agricultura prejudicial ao ambiente, e estão a ser ensaiados em Moçambique, com o apoio desses países. Não pode ser. A China já destruiu o seu próprio território e agora está a destruir África.

E os países africanos têm condições de rejeitar ou dizer não a esse tipo de investimentos?
Pois, essa é sempre a questão, como se África fosse refém da sua própria pobreza. Como estamos numa situação de pobreza, então aceitamos tudo. Mas não pode ser tudo. Há países em África que têm feito uma gestão ambiental muito boa. Estou a pensar, por exemplo, no Botswana. Temos de olhar para os bons exemplos dos países africanos. E não para os maus.

Pode haver acções concertadas?
O primeiro país a intervir foi a Índia, enviando um navio. Essa solidariedade entre países do Sul é muito importante. Em segundo lugar, há que alertar e sensibilizar as sociedades civis dos países da Europa para que pressionem os seus governos para haver uma reparação. Porque se trata de uma reparação. Quando a Europa envia alimentos ou pessoas especializadas em resgate, não está a ajudar. Para mim isso é essencial, não é um favor. É preciso consciencializar as sociedades civis destes países que cometeram os danos de que esses países têm de ser responsabilizados. É um debate que tem de começar.

Mas o seu discurso, como a sua obra, estão sempre muito próximos da política.
A política é tudo. E o que é a literatura? Os livros são territórios de debate. Se um livro não servir para fazer pensar no presente, na sociedade em que se vive, então serve para quê? Toda a literatura é política. Não há literatura de entretenimento. Em África, a maioria das pessoas não consegue fazer ouvir a sua voz; há pouco debate. Em contextos assim ainda é mais necessário que a literatura cumpra esse papel. Mas acho que toda a literatura o faz. Porque ou é literatura ou é entretenimento.

O PÚBLICO viajou a convite da Embaixada de Portugal/Camões em Berlim

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