O festival SXSW é música em movimento

Como se tira a bissectriz a um festival se só vamos chegar a uma pequena parte das 1980 actuações? Não é fácil, mas podemos constactar a proliferação do rock capitaneado por mulheres que continua a ser a melhor promessa para um género com sinais de esgotamento. E, claro, a miscigenação, essa forma alquímica de reinventar géneros musicais.

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Travis P Ball/Getty Images for SXSW

Quem andou lá por perto conta que antes da morte vemos uma luz branca. Para o peão de passo estugado pela noite do Sixth Street District de Austin, a luz branca também pode ser a última coisa que ele vê, mas esta corre veloz sobre duas rodas. Há que estar bem atento aos torpedos luminosos das trotinetes que passam a rasgar o trajecto de quem procura chegar ao próximo concerto do festival SXSW, por extenso South by Southwest, ou coloquialmente South By.

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Elisapie, canadiana de mãe inuíte: o Norte das grandes paisagens, rock cinematográfico, voz envolvente que nos canta histórias íntimas, familiares, mas com textura das suas raízes indígenas Travis P Ball/Getty Images for SXSW

As scooters são um perigo público e uma enorme tentação para quem se empenha em fazer mais de 14 quilómetros por dia para ver o maior número de artistas possível. E se os lisboetas choramingam pela confusão que são aqueles “éles” de metal abandonados nos passeios, os texanos em breve terão de se adaptar a cruzamentos em hora de ponta com a agitação de uma cidade asiática. E sim, Austin é uma cidade típica norte-americana, quase plana e de passeios largos, mas há mesmo muitas trotinetes.

As cidades acabarão por se adaptar à conveniência, como o SXSW se adapta à lógica de um meio rápido para ir de A a B, com o mínimo de interferências. Afinal está na matriz de um festival urbano como este a ideia de mobilidade. Circulação entre espaços, circulação entre países, circulação entre géneros, circulação entre fases de uma carreira... Que isso encarne em artistas como Tamino, meio belga, meio egípcio, a cantar baladas intemporais em inglês, num emigrado do Quénia, J.S. Ondara, que se apaixonou, adolescente, por Bob Dylan, no espanhol Twanguero, habitante do mundo, capaz de misturar rumba e flamenco com rockabilly, ou nas musicas de pop-rock cantadas em inuíte, pela canadiana Elisapie, é a marca deste tempo de fusão, por muito que os arrivistas do extremismo insistam nos muros.

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Tamino, meio belga, meio egípcio, a cantar baladas intemporais em inglês Chris Saucedo/Getty Images for SXSW

Mas antes da música, a cidade, pelo menos esta parte da cidade junto ao rio Colorado, a baixa, grandes arranha-céus, paisagem urbana espalhada com grandes espaços vazios. Há duas ou três ruas que concentram bares, nomeadamente a 6th, com os seus edifícios de 1900, mas impera a típica metrópole norte-americana construída em torno do automóvel. Alguns parecem verdadeiras caixas de ritmos, reverbando com os baixos e concorrem sonoramente com os riquexós, de colunas apontadas aos turistas, pedalando no ritmo de verdadeiros tapetes sonoros de música electrónica.

A música, nesta cidade universitária e importante pólo tecnológico, pode estar ao virar de cada esquina vinda de um bar, de uma varanda, de um músico de rua e Austin orgulha-se disso mesmo, intitulando-se a Live Music Capital of The World. Um slogan que deve em muito ao programa musical de televisão há mais tempo no ar, o Austin City Limits, que é também nome de festival, e a um dos pais da música norte-americana, Willie Nelson, orgulhoso texano com estátua de bronze e a cara estampada em t-shirts e canecas à venda nas lojas de recordações.

O SXSW nasceu de um jornal alternativo de distribuição gratuita, o The Austin Chronicle, em 1987, e foi crescendo em várias direcções para se tornar num conglomerado de eventos. Há os cinco dias de música, mas há também o Interactive, o Gamming, o Cinema, o Comic, as palestras uma feira de produtos relacionados com música, e todos se cruzam uns com os outros nas primeiras semanas de Março.

Para os locais e frequentadores habituais do SXSW, o espírito original tem vindo a esvair-se e o festival vai perdendo alguma da sua genuinidade. “Está cada vez mais ‘corporativo’, serve para vender outras coisas que não a música” diz João Data, um gaiense radicado em Austin que dedica parte do seu trabalho como artista gráfico a criar cenários para experiências psicadélicas e de alteração sensorial, com clientes em festivais como Burning Man ou Lollapalooza. E isso também se tem ressentido na afluência. “Antes vendia-se uma pulseira muito facilmente na internet. Este ano coloquei-a à venda e nada”. Talvez por isso, para reconquistar alguma simpatia local, este ano havia dois concertos de entrada livre.

Os palcos do festival multiplicam-se por inúmeros locais, mas na Red River St há uma grande concentração de espaços que representam o tal “espírito corporativo”. Esta é uma rua sem saída em que as diferentes habitações térreas, algumas de arquitectura antiga, foram transformadas em bares. Aqui é possível passar da “casa” da Fender para a da Doc Marteens ou visitar a “embaixada” do Canadá, vizinha da “embaixada” da Austrália.

Demasiado comercial ou não, o SXSW permanece uma excelente montra e, como tal, não é espanto que países, editoras e artistas apostem num evento que atrai gente de todo o mundo. Como Odette, 22 anos, uma voz e uma figura a lembrar Adelle, que ouvimos num palco patrocinado por uma marca de roupa, só voz e piano electrónico, a meio da tarde. A sua música intimista incorpora o fraseado das spoken words para desembocar numa pop com sublinhados de soul, reflectindo a diversidade das suas raízes: australiana, filha de uma mãe sul-africana que a fez despertar para os ritmos negros e um de pai inglês pianista de jazz. Está em movimento na sua carreira, tem material para grandes palcos e procura aquele clique que a ajude a sair da Oceania. “Gravei um disco o ano passado, To a stranger, tenho autuado em vários países e, para mim, a vinda a este festival é uma imensa oportunidade para mostrar do que sou capaz” disse ao Ípsilon. Quatro concertos em três dias para tentar.

Não há, à partida, vidas fáceis nesta arte como confessa Echo, americana de origem japonesa um dos elementos da banda local Golden Dawn Arkestra que tocou por duas vezes na edição deste ano. “Austin tem muita fama na música e por isso acaba por atrair muita gente que se instala cá à procura de uma oportunidade”. Os Golden Dawn Arkestra nasceram como banda de homenagem a Sun Ra mas evoluíram para um circo funk, pleno de afrobeat, e os seus mais de 12 elementos, explica Echo, “têm de fazer muitos trabalhos, tocar em muitos sítios diferentes para viver da música”. Os músicos que sejam aceites no SXSW e venham sem apoios têm de pagar viagem e alojamento e a solução pode estar em ganhar algum animando as ruas de Austin, como já fizeram algumas bandas portuguesas.

Uma noite de festival

Sem saber se alguns dos que tocam na rua são artistas do festival, cruzamos na animada rua 6, onde os jovens americanos se esforçam por beber o máximo até às 02h00, porque a partir daí tudo fecha e vigora a “lei seca”. São 20h de quinta-feira, e entramos na Flamingo Cantina, um bar relaxado com um bom palco e decoração que denota queda para a world music. Vinda do Ártico, começa a actuar Elisapie, canadiana de mãe inuíte, com a sua banda. É uma artista multi-facetada, realizadora de cinema, um prémio Juno em 2003 com uma outra banda, mas que agora promove o seu terceiro disco a solo, The Ballad of The Runaway Girl. É o Norte das grandes paisagens, rock cinematográfico, uma voz envolvente que nos canta histórias íntimas, familiares, mas com textura das suas raízes indígenas.

É uma viagem longa a de Elisapie, já um nome consagrado no Canadá, como consagrado se pode escrever em referência à banda que, uns quarteirões mais a norte, nas traseiras da churrascaria Stubb’s toca para algumas centenas de pessoas. Os Car Seat Headrest já estiveram há uns anos no festival, num espaço reduzido como aquele em que actuava a canadiana, agora regressam crescidos. Mesmo em versão reduzida (quatro elementos) são banda para encher estádios e a entrega é para uma plateia de milhares. Canta-se “drugs are better with friends” em coro. Os 50 minutos de concerto (uma excepção, já que quase todos têm 30 ou 40 minutos rigorosamente cumpridos) foram curtos.

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A voz delicada, quase etérea, de Clementine Creevy, 22 anos, contrasta com o muro de guitarras que vai desde o rock abrasivo dos anos 90 até ao shoegaze: os Cherry Glazerr Jim Bennett/WireImage

Antes deles tocaram os Cherry Glazerr, uma banda californiana assinalada para crescer. A voz delicada, quase etérea, de Clementine Creevy, 22 anos, contrasta com o muro de guitarras que vai desde o rock abrasivo dos anos 90 até ao shoegaze. Há imaginação e personalidade, mas nem tudo sai tão articulado como os encómios faziam crer.

É preciso correr. Os Car Seat Headrest acabaram às 22h55 e às 23 tocam os Boy Scouts num local referenciado como CU29. É um bar de cocktails, a única porta aberta, naquela face escura do quarteirão e já chegamos a meio, mas com um Mai Tai na mão ainda é possível saborear o registo harmonioso e delicado da voz de Taylor Vick, a alma de uma banda feita de coisas frágeis.

Ambicionando roaming de borla para poder ter acesso a uma trotinete, mais uma corrida, desta feita até ao Empire. Na zona ao ar livre, um susto. Uma banda de doom metal tem em palco uma cruz com um Cristo de carne e osso. Não ficou o nome nem o registo sonoro, porque lá dentro a energia de Miya Folick, vibrante, quase pueril, limpa tudo. Há Thingmajig, canção capaz de nos devolver o respeito pelo mundo, mas há também muito rock luminoso de quem ainda vai no primeiro álbum e promete futuro. “Algumas vezes quando subo ao palco sinto-me falsa, mas falsos são aqueles que nos fazem sentir assim, são aqueles que nos governam”. Tens razão Miya, não lhes ligues.

A noite está quase a terminar porque, tudo pára antes das 02h00. Uma corrida de regresso à Flamingo Cantina para uma viagem até Kinshasa. Os KOKOKO! vêm da capital do Congo e já comeram muito mundo depois de sair do gueto. Os seus instrumentos construídos a partir de latas, de velhas máquinas de escrever, replicam os sons da electrónica e soam perfeitos para um momento de caos e alegria.

E assim a acaba o dia e a pergunta não nos deixa dormir. E tudo o resto que não vimos? Como se tira a bissectriz a um festival se só vamos chegar a uma pequena parte das 1980 actuações? Não é fácil, especialmente para uma primeira vez, mas podemos constactar a proliferação do rock capitaneado por mulheres que continua a ser a melhor promessa para um género com sinais de esgotamento. Não é só Cherry Glazerr, são os The Beths, é a ironia apunkalhada dos Iluminati Hoties, é a presença enérgica e simultaneamente delicada dos Fanclub, é a energia de Samia... Elas estão por todo o lado.

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CHAI, quarteto de japonesas com pilhas de energia, capazes de ir da pop ao rock, da new wave ao punk, sempre borbulhantes para escavacar a ideia de que todas as orientais têm de ser “kawai” Lorne Thomson/Redferns

Outra dominante é a descoberta da música vinda do oriente e ninguém provocou mais sorrisos do que as CHAI, quarteto de japonesas com pilhas de energia, envergando os seus fatos de flanela e capazes de ir da pop ao rock, da new wave ao punk, sempre borbulhantes para escavacar a ideia de que todas as orientais têm de ser “kawai”. Do lado escuro deste planeta vêm os Yahyel, banda de Tóquio que professa a electrónica servida por ritmos forte e uma voz grandiloquente. Entre estes dois nomes, há um mundo de propostas no SXSW.

E há claro a miscigenação, essa forma alquímica de reinventar géneros musicais. Absoluta e assumida como por exemplo no caso de Diego Garcia, ou melhor Twanguero, o espanhol cidadão do planeta da guitarra que com o seu exímio dedilhado faz com que a rumba, o passodoble ou o flamenco sejam coisas do bairro de Carl Perkins e de Jerry Lee Lewis. E há a outra mistura, mais subtil, feita das nuances de quem veio de outro lado para morar ali. É o caso de J.S. Ondara, que um dia, em Nairóbi, perdeu uma aposta com um amigo que lhe garantia que Knock on heavens door não era escrito pela sua banda favorita, os Guns’n’Roses. Descobriu Bob Dylan e por ele emigrou para Minneapolis para se incrustar na tradição americana de contar histórias cantando. Mas há algo na sua voz angélica, no calor com se entrega ao murmúrio, que ressoa de outras planícies que não só as do Oeste.

Descobertas e surpresas

Moradores habituais deste festival, os apresentadores do programa All Songs Considered, da NPR, acham que ele está a voltar a ser o mapa das descobertas que foi, em vez de um palco para famosos que vinham aqui obter o seu carimbo de hype, Wyclef Jean num novo projecto, Billie Elish, com sessão esgotada, a velhinha Joan Jett são alguns dos poucos nomes do alinhamento que podem dizer alguma coisa às massas

Mas há os que podem estar já em transição para um patamar superior de reconhecimento, como Cautious Clay, que teve uma das grandes salas do Centro de Convenções de Austin bem preenchida para ouvir o seu cruzamento elegante de jazz, R&B e roupagens indie que nos fazem até lembrar James Blake. Multinstrumentista, produtor, é um escritor de canções bem maturadas capaz de servir um público que espera ver esta latitude musical ocupar novos espaços.

Ou então Tamino, magnética presença deste belga de origem egípcia, 21 anos, com uma nobreza e uma beleza que faz soltar suspiros na plateia. A sua voz é portentosa, encarnação serena de Jeff Buckley, com uma capacidade de subir ao falsete que é desarmante. Vai ser difícil esquecer a sua figura alta no centro da igreja presbiteriana de St David acompanhado só da guitarra a conduzir-nos por canções tão desoladoras como belas.

Talvez a Sir Babygirl, de nome próprio Kelvin Hogue, entregando-se de corpo e alma ao universo queer, saltitando entre as fronteiras de género, possa ter ainda alguma dificuldade em afirmar o seu pop irreverente de guitarras e samplers. Mas a sua actuação, coberta de tule florescente e acompanhada por duas ginasticadas bailarinas dificilmente será cairá também no esquecimento.

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Bixiga 70, colectivo de São Paulo: o samba, o jazz, os ritmos africanos, a música latina, amalgamada por metais e guitarras esfusiantes Jack Vartoogian/Getty Images

Mais do que o voo de pássaro sobre o momento musical, um festival tão diverso como o SXSW valerá sempre pelas pérolas que conseguimos fixar e as pistas que daqui levamos para novas viagens. Para mim ficou ainda uma certeza, ouvida no estertor do festival. Se um dia o mundo estiver para acabar, o último concerto deve ser dos Bixiga 70, colectivo de São Paulo. O samba, o jazz, os ritmos africanos, a música latina, amalgamada por estes metais e estas guitarras esfuziantes, são a melhor despedida antes do apocalipse.     

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