Precariedade na Ciência: uma realidade que Governo e reitores não podem ignorar

Debater a investigação científica sem que sejam discutidas todas estas questões é ignorar a realidade do sistema, a começar pelos problemas com que se deparam todos os dias aqueles que mais contribuem para a produção científica nacional.

O sistema científico e tecnológico, desde as Universidades aos Laboratórios de Estado, passando pelas entidades sem fins lucrativos, cresceu muito significativamente nas últimas décadas, tendo por base a generalização do trabalho precário na investigação. Os dados do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional retratam claramente esta situação entre os investigadores doutorados. Em 2017, havia 208 investigadores integrados na carreira, 722 com contratos a prazo financiados pela FCT e 2377 com bolsa. Esta imensa precariedade não é revertida nem pelo Programa Extraordinário de Regularização de Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP), nem pelo Programa de Estímulo ao Emprego Científico, onde as taxas de integração de investigadores doutorados são de cerca de 9% e 4%, respectivamente.

O alargamento e eternização da precariedade entre os trabalhadores científicos é, pois, a regra. Esta situação decorre sobretudo de um insuficiente investimento em ciência e da inexistência de financiamento estratégico para a contratação de trabalhadores científicos. Resulta também de a principal instituição financiadora das actividades de investigação, a FCT, ter promovido, ao longo de décadas, contratações através de bolsas e contratos de trabalho a prazo. Este quadro está em total sintonia com a defesa explícita pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) do suposto carácter não permanente da investigação e da necessidade de rotatividade de investigadores (comunicado de 6 Março de 2018). Ignora-se, contudo, todos os trabalhos científicos que revelam que a qualidade do trabalho é amplamente afectada pela precariedade dos vínculos laborais e que a produção de conhecimento científico é uma necessidade permanente das instituições académicas e científicas. Assim, à exiguidade de investimento em ciência, soma-se a inenarrável posição de bloqueio que o CRUP mantém à integração dos trabalhadores científicos.

Com a entrada em funções do actual Governo e as suas promessas de “erradicar a precariedade” entre investigadores, foram criadas expectativas de que esta situação de precariedade estrutural teria finalmente os dias contados. Contudo, mais de um ano depois da publicação da Lei do PREVPAP, e dois anos e meio depois da publicação do regime jurídico do emprego científico, os resultados da redução da precariedade são residuais. Senão vejamos: num universo de 1630 requerimentos entregues na CAB Ciência, no âmbito do PREVPAP, apenas 142 investigadores (9%) receberam parecer positivo para integração; no âmbito da norma transitória do DL 57/2016, foram celebrados 1505 contratos a termo; e nos restantes programas de emprego científico, que contemplam 3233 posições, apenas serão financiadas 52 vagas na carreira de investigação e 169 vagas na carreira docente.

A este quadro lastimável acresce a recente reviravolta da intenção anteriormente manifestada pelo Ministro Manuel Heitor de eliminar as bolsas de pós-doutoramento. Neste contexto, as declarações do Sr. Ministro de que se teria atingido o “pleno emprego” entre os doutorados revelam ou um profundo desconhecimento do seu sector, ou uma vontade deliberada de iludir a sociedade, tendo causado um estado de revolta na comunidade científica, que ficou expresso em várias cartas abertas subscritas por milhares de trabalhadores precários. Enquanto membros activos do sistema científico e tecnológico, vimos requerer que Governo, reitores e representantes parlamentares intervenientes na segunda sessão da Convenção Nacional do Ensino Superior dedicada à “Investigação, Inovação e Ensino” não deixem de debater a precariedade laboral e a dignificação das carreiras científicas, como partes integrantes da estratégia para o desenvolvimento do ensino superior e ciência. Mais especificamente, urge acabar com todas as bolsas e substituí-las por contratos de trabalho, assegurando, paralelamente, a abertura regular de concursos para integração na carreira de investigação científica, seja com receitas próprias das instituições, seja com financiamento da FCT, à semelhança do que sucede por exemplo em Espanha ou França. Para que tal seja possível, é necessário um reforço sustentado do investimento público, e um orçamento estrutural plurianual para a ciência que permita uma articulação do investimento em pessoas, projectos e instituições. Urgente é também a definir que a autonomia das instituições esteja dependente dos níveis de democratização das mesmas, assim como regular a atribuição de fundos públicos e fiscalizar a actuação das instituições privadas sem fins lucrativos, nomeadamente no que respeita ao cumprimento da legislação laboral.

Debater a investigação científica sem que sejam discutidas todas estas questões é ignorar a realidade do sistema, a começar pelos problemas com que se deparam todos os dias aqueles que mais contribuem para a produção científica nacional.

A valorização profissional de todos os trabalhadores associados à investigação científica tarda em impor-se. O trabalho científico é trabalho!

Precários do Estado
ABIC - Associação de Bolseiros de Investigação Científica
ACP-PI - Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis
Bolseiros e IFs da FCUL
Bolseiros LNEC
LUPA - LAQV & UCIBIO Postdoc Association
NInTec - Núcleo de Investigadores do Técnico
Núcleo de Bolseiros do IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera)
Núcleo de Bolseir@s, Investigador@s e Gestor@s de Ciência da NOVA FCSH
Precários da UAlg - Precários da Universidade do Algarve
Rede de Bolseiros de Gestão de Ciência e Tecnologia
Rede de Investigadores contra a Precariedade Científica

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