“A Igreja não tem medo da História”

Nunca o saberemos, os “ses” não existem na História. Mas o que sabemos e fica para a História é que durante o Holocausto foram exterminados seis milhões de judeus.

Palavras do Papa Francisco ao anunciar no passado dia 4 de Março a abertura, em 2020, dos arquivos secretos de Pio XII cobrindo o período de 1939 a 1958. Segundo o Vaticano, Francisco procura assim “homenagear a figura do Papa a quem calhou conduzir a Barca de Pedro num dos momentos mais tristes e sombrios do século XX”. Reservada aos historiadores, trata-se de uma medida importante, já prevista anteriormente e há muito solicitada por investigadores, nomeadamente judeus. Com efeito, nada melhor do que o conhecimento histórico para clarificar a posição de Pio XII e do Vaticano na época.

No entanto, e embora naturalmente incompleta, sabe-se através da investigação feita ao longo dos anos e de testemunhos diversos que o Papa Pio XII terá tentado fazer da sua Igreja um espaço de asilo a perseguidos e de mediação diplomática. No seu livro Os Judeus do Vaticano, o historiador israelita Avraham Milgram demonstra, por exemplo, que entre 1939 e 1942 o esforço do Vaticano e do Papa permitiu salvar a vida de 1000 judeus baptizados (católicos não-arianos) da Alemanha, conseguindo vistos para o Brasil.

Outro exemplo significativo da política do Vaticano na época é o do padre Joaquim Carreira, nascido no concelho de Leiria e que mais tarde, já como reitor do Colégio Pontifício Português em Roma, não hesitou, em plena ocupação nazi da Itália (1943/44), em arriscar a sua segurança e do próprio Colégio, acolhendo e escondendo cerca de meia centena de judeus e resistentes que corriam risco de vida e alojando mais de uma centena de mulheres e crianças em três casas religiosas de Roma.

A história deste Padre é contada pelo jornalista António Marujo no seu livro A Lista do Padre Carreira, cuja investigação deu origem ao reconhecimento de Joaquim Carreira como “Justo entre as Nações” pelo Yad Vashem – Instituto Nacional Israelita para a Memória, Educação e Investigação do Holocausto, atribuído a todos os não judeus que, arriscando a sua vida e segurança, salvaram judeus durante a guerra. A medalha e o respectivo certificado de “Justo” foram entregues ao sobrinho na Sinagoga de Lisboa em 2015 no dia do Yom Hashoah, Dia do Holocausto. Na medalha está escrito: “Quem salva uma vida salva o universo inteiro – O povo judeu reconhecido.”

É uma história aparentemente simples, mas não tanto. Na Itália fascista de Mussolini, mesmo antes da ocupação nazi, já vigorava um regime de excepção, apoiado numa temível polícia secreta, tribunais especiais para julgar crimes considerados lesivos à segurança do Estado, censura, expulsão e perseguição violenta de milhares de opositores. E a partir de 1938, começa uma campanha antissemita contra os judeus que os vai destituindo de todos os direitos. Numa entrevista, a célebre pianista italiana Nella Maissa, recentemente falecida, dirá mais tarde: “Deixámos de ser gente. Não tínhamos direitos. Qualquer pessoa podia matar-nos, porque nós judeus nem sequer éramos considerados gente. Foi nesta situação horrorosa que decidimos partir de Itália.” Como se sabe, Nella veio para Portugal e veio a tempo porque mais tarde, com a ocupação nazi da Itália, a situação piorou drasticamente, nomeadamente para os judeus, muitos dos quais foram deportados para os campos de morte – o caso mais emblemático é o de Primo Levi, deportado para Auschwitz, como resistente e judeu.

Em Roma, o padre Carreira não foi a excepção ao salvar judeus acolhendo-os no seu colégio. A investigação cuidada de António Marujo comprova-o: numerosas casas, conventos e instituições do Vaticano acolheram vítimas de perseguição, incluindo judeus, comunistas e resistentes antinazis. E não só em Roma e em Itália, mas em numerosos países, toda a minha própria pesquisa sobre a Shoah demonstra que numerosas freiras, padres e todo o tipo de instituições católicas acolheram, esconderam e salvaram nomeadamente crianças judias, correndo riscos imensos e pagando frequentemente com a própria vida. A França é disso um exemplo flagrante.

Esta acção terá tido, senão o incentivo, pelo menos a bênção do Vaticano. E, na verdade, do meu ponto de vista não será essa a questão que está em causa na atitude papal durante a Shoah, mas sim a estratégia escolhida pelo Papa Pio XII do silêncio relativamente ao massacre nazi dos judeus. Sabemos que este não foi apanágio exclusivo de Pio XII: os Aliados, a começar pelo EUA, a Cruz Vermelha Internacional, governos e instituições preferiram optar pelo silêncio, apostando na derrota nazi. Marujo evoca o dilema de um Papa dividido entre as suas convicções pessoais e o receio de que qualquer tomada de posição pública fosse mais prejudicial para as vítimas judias ou cristãs – um Papa cercado, espiado: “O Vaticano foi talvez mais vigiado pelos nazis do que qualquer outro alvo de espionagem durante a segunda Guerra Mundial”, lê-se no livro...

Seja. Mas para a história fica a dolorosa e perturbante questão: se a voz do chefe máximo da Igreja Católica se tivesse feito ouvir de forma clara e inequívoca, se em vez do silêncio a que se remeteu, tivesse denunciado pública e firmemente o genocídio nazi, não teria dessa forma Pio XII contribuído para impedir o extermínio ou, pelo menos, a sua atroz dimensão?

Nunca o saberemos, os “ses” não existem na História. Mas o que sabemos e fica para a História é que durante o Holocausto foram exterminados seis milhões de judeus, perto de 200 mil ciganos, homossexuais e resistentes. E talvez essa voz com a sua força simbólica tivesse algum impacto, alguma consequência. Talvez...

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