O Cão Solteiro espera resposta do abismo

Mise en Abyme é o novo encontro entre a companhia Cão Solteiro e o artista plástico Vasco Araújo. No São Luiz, de 1 a 3 de Março, o palco entrega-se a uma peça que tende para o vazio.

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Joana Dilão

Mise en Abyme começa num jardim. Assim diz a didascália escrita pelo punho de José Maria Vieira Mendes. Mas, logo a seguir, acrescenta que esse dado é, afinal, irrelevante, uma vez que “tudo pode ser um jardim”. E a didascália, em rigor, diz respeito não a Mise en Abyme mas a um filme (que não será rodado) intitulado A Morte do Desejo. É favor não desesperar se o entendimento das linhas anteriores não for absolutamente claro. Tentemos explicar. Em mais uma parceria entre a companhia de teatro Cão Solteiro e o artista plástico Vasco Araújo, em que nada é bem aquilo que parece à primeira vista, o ponto de partida é uma obra (Capriccio) que Araújo apresentou na sua exposição Morte del Desiderio, na Galeria Francisco Fino, Lisboa, em 2018. E essa obra previa a projecção, ao longo de uma hora, do texto encomendado a Vieira Mendes, o tal guião para um filme que nunca haveria de sê-lo.

Já na altura em que contactou o dramaturgo para lhe pedir esse texto, Vasco Araújo tinha em mente a sua utilização futura num espectáculo a montar com o Cão Solteiro. E que se valeu, desde logo, desse dado inicial: numa sala de teatro – no caso, o Teatro São Luiz, Lisboa, de 1 a 3 de Março –, seria colocado em cena um falso filme e também a memória de uma peça de artes plásticas. O abismo estava garantido. Depois era só pôr em marcha o modus operandi desta parceria, conforme a descreve o artista plástico: “Mise en Abyme vem desta coisa de a minha peça estar dentro da peça do Cão Solteiro. E, na realidade, é esse o processo que seguimos em todas as outras criações – eu entro no Cão Solteiro, o Cão Solteiro entra no meu trabalho, depois eu entro de novo no trabalho do Cão Solteiro e andamos nisto, com as vidas embrulhadas umas nas outras.”

Só que, desta vez, há novidades que se impõem – “Quando esgotarmos o nosso percurso fechamos a companhia”, diz Paula Sá Nogueira ao Ípsilon, numa alusão à exclusão da companhia dos últimos apoios sustentados da DGArtes, afirmando que podem tê-los alvejado na testa mas, paciência, não morreram. E uma das novidades prende-se com a presença de elementos (contadores de notas a um canto do palco, uma outra figura em pose de estátua perto do proscénio) que em nada contribuem para o espectáculo, num desenvolvimento de “dissociação de elementos ou de associação de uma forma não muito tradicional” em que têm vindo a trabalhar. Isso e uma monumentalidade que há-de carregar ainda mais a queda num abismo chamado vazio.

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Joana Dilão

À medida que Mise en Abyme (título a que se acrescenta um traço sobre as palavras, porque mesmo este conceito serve e não serve aquilo que se passa no palco) avança, os vários telões que enchem a cena de início vão-se elevando, criando uma altura de dez metros, mas em que toda essa grandiosidade se vai acumulando até expor um palco cada vez mais despido (os telões são levantados e ficam erguidos sobre a zona de representação, progressivamente mais ampla).

“Isto corresponde a um esvaziamento de espaço, de desejo, de intenções, de tudo”, classifica Paula Sá Nogueira. “Digamos que, no fim, só o vazio é que pode ficar.” Mesmo em termos de figurinos, acrescenta a fundadora do Cão Solteiro, não há correspondência clara entre aquilo que estas figuras avulsas – mais do que personagens – dizem e fazem em palco, tudo se transforma a toda a hora, com a certeza única de que as cores vão desmaiando e caindo para o mesmo nada. Há uma outra palavra para este abismo a que Cão Solteiro e Vasco Araújo se entregam: tédio.

À espera

É a pensar nessa ideia de tédio que Cão Solteiro e Vasco Araújo convocam a monumentalidade para Mise en Abyme. Os espectáculos (de teatro e não só), acredita Paula Sá Nogueira, tomaram um rumo que inclui essa grande escala como medida de espectacularidade, em que todos os meios concorrem para uma obra enquanto acontecimento, efeitos atrás de efeitos para que tudo pareça encostar o espectador à convicção de que tanto fogo-de-artifício só pode equivaler a um espectáculo extraordinário. Ao mesmo tempo que, naturalmente, esse espalhafato serve de analgésico provisório para disfarçar as dores deste “tédio quotidiano”.

Ora o tédio é também causa e consequência da tal morte do desejo que anuncia o texto de José Maria Vieira Mendes. “Desejar é uma confirmação do presente que recorre ao passado, que replica o passado”, diz Rodrigo, uma das falsas personagens de Mise en Abyme. E tudo se resume a isto: a enunciação de um desejo futuro parte de uma certeza passada. Por isso, o desejo real não existe, é pouco mais do que um reflexo, “há apenas continuação e repetição, repetição, repetição”, comenta Paula Sá Nogueira. Daí que Rodrigo, um esquisso de escritor, se apresse a informar Marco, depois de o ter procurado em Bolonha, que encontrá-lo manteve-o preso ao passado. E, por isso, só lhe resta partir: “Não é isto o que quero porque eu não quero nada.”

Então, se o passado está esgotado e só pode desembocar num presente que há-de ser exactamente aquilo que se espera, como é que se inventa um novo futuro? “Tem de haver um desejo de corte com o passado e com aquilo que se adquiriu”, aventa Paula. “Há que desejar o futuro, mas não de uma forma passiva. Temos de implicar-nos.” Porque quando não se consegue criar algo de novo, acrescenta Vasco Araújo, apenas se pode ficar à espera. “Ou fazemos uma mudança radical, em que podemos falhar redondamente (e então teríamos outro problema que seria lidar com essa falha), ou então ficamos à espera. E há anos que a Humanidade está à espera, seja dos messias ou do grande amor. Esta peça também é sobre essa espera.”

Para Vasco, Mise en Abyme goza igualmente de uma encantatória proximidade com a matéria das artes plásticas. Mesmo que no seu entender a actividade do Cão Solteiro se jogue sobretudo no campo da performance, num qualquer ponto intermédio entre o teatro e as artes visuais, desta vez acredita que o objecto artístico resultante da colaboração entre as duas partes resvala para a “tendência das artes plásticas em criarem questionamentos – não afirmam coisas a maior parte das vezes”. É para aí que Mise en Abyme caminha, deixando as grandes afirmações de lado, carregando na violência sem que esta leve a novos amanhãs, abrindo-se cada vez mais ao vazio, espreitando demoradamente para o abismo à espera de que o abismo possa, finalmente, manifestar-se.

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