Paula Sá Nogueira

Depois deles, ela, a mulher, Paula Sá Nogueira. O seu humor é o da exposição da fragilidade de um Buster Keaton. O seu lado negro, das personagens de Tchekov. Actriz, 46 anos.

E ei-la, chegando em cima de um estrado deslizante, com uma cabeleira loura, vestida de branco. Em todo o seu esplendor. E com uma tremenda ironia. Quando Paula Sá Nogueira aparece em "Histórias Misóginas" - assim, como uma estrela de cinema - é a mãe de 17 filhos que espezinha o marido depois de o enloquecer. Só a voltamos a ver no final. E aí é uma elegante mulher, com uns longos cabelos já esbranquiçados, a representar uma prostituta de 23 anos: alguém que é como uma folha de papel, cheia de buracos por onde passam a vida, as pessoas, as paisagens, as jóias, os casacos, diz.Paula Sá Nogueira foi uma Frida Kahlo absorta, um corpo para ser amparado pelos outros. Transportou o universo atormentado da pintora mexicana - a paixão voraz pela vida, pelos homens e pelas mulheres - na figura poética de "Furiosa Tempestade", o espectáculo seguinte da Cão Solteiro. Retomou mais tarde essa fragilidade na mulher dos transportes públicos de Harold Pinter (em "Problemas" e "O Alfinete do Anestesista"). Que fragilidade? Aquela que existe nas personagens de Tchekov (que interpretou em "Pano de Muro"): densa, profundamente melancólica, suspensa. A fragilidade camuflada com o humor tenaz de um Buster Keaton. Ou a frase de uma canção que Paula Sá Nogueira associou a Kahlo: um sopro que se engole, que se suspende e paralisa o corpo. Paula Sá Nogueira é aquela actriz que tantas vezes tem o ar de quem fuma um cigarro e diz: "We've came a long way, baby" (é o slogan de uma marca de cigarros que ela diz ter sido o mote para as duas mulheres de "Histórias Misóginas").provérbios e Buster Keaton. Quando virem a mãe de 17 filhos, lembrem-se de duas coisas que contou ao Y. Primeira: "A minha mãe diz provérbios a toda a hora. Isso marcou-me imenso. Um provébio tem uma moralidade, parece uma história da qual só nos contam uma frase. Não sei explicar porquê, mas isto tem a ver com a maneira como represento." Segunda: "Não sendo tão obviamente comovente quanto Chaplin, Buster Keaton é mais empreendedor. Não desiste do seu objectivo, nem que o cenário venha abaixo. Representa situações tão limite e tão absurdas que acho imensa piada aquela exposição do ser humano com as suas invenções, os seus riscos, os seus desastres."Tem 46 anos. Nunca frequentou uma escola de actores - foi fazendo workshops, ateliers, cursos pequenos. Com a irmã, Mariana, e com o actor Marcelo Urgeghe, formou o grupo Cão Solteiro. Um sítio onde não existem nem deuses nem chefes, nem gurus. Vão convidando encenadores para dirigirem os seus espectáculos, construídos a partir de temas, conceitos, textos fragmentados. Para quem nunca a tenha visto representar, acrescentamos que se tem movido em figurinos e cenários depurados, harmoniosos, poéticos, entre o registo dramático (interior, negro) e o cómico (clownesco). Diz ela que há dois grupos de pessoas: um, que diz que ela é uma actriz cómica; outro, que a considera actriz dramática. "Quando trabalho uma personagem gosto de apanhar a profunda humanidade e fragilidade, a contradição, a falha. Acabo por construir sempre personagens que são um bocadinho psicológicas, e é-me difícil pôr leveza nelas, acabam sempre por ficar densas. É que faço teatro porque as pessoas me intrigam, deixam-me perplexas, apaixonam-me."a morte e o tempo. Em "Histórias Misóginas" Paula e a Cão Solteiro parecem ter perdido o medo da relação com a plateia. Não é um espectáculo tão contemplativo quanto os outros. "Não representaria como represento se não estivesse na Cão Solteiro. Claro que somos três pessoas, com três imaginários diferentes. Os nossos espectáculos nascem de divergências, visões opostas. Ás vezes correspondem ao que imaginava; noutras descubro coisas em que nunca tinha pensado e que me fascinam. Como em 'Furiosa Tempestade', um espectáculo onde acho que não acertei como actriz. Para mim, a paixão tinha a ver com obsessão, com um sentimento completamente limite que nos invade, que não controlamos, que vive dentro de nós e nos condiciona. E o espectáculo foi ter a uma imensa nostalgia, que não associava à paixão." Descemos até à profundidade obscura: em "Pano de Muro", Paula Sá Nogueira representava uma actriz no final de uma carreira gloriosa. Coxeava no palco, amparada por uma bengala, enquanto caíam penas brancas ao som de "Quadros de Uma Exposição", de Mussorgski. A actriz vai pensar na morte num dos próximos espectáculos da Cão Solteiro. "Talvez seja da idade, de estar supostamente a metade da vida, mas tenho vontade de pensar na morte. Não acredito em Deus portanto a morte é um fim. Gosto da morte, por ser incontornável, e da ideia de ser tremendamente individual. Na morte, esgota-se o tempo, que me é muito querido. Por ser irrepetível, tornar as coisas únicas: aquilo que fazemos é irreparável." Que imagem, som, livro, quadro para este tempo de que fala, o seu tempo? Primeiro, responde que nunca decora autores, títulos, realizadores, "referências". Ficam-lhe as sensações, as imagens, os cheiros, o que é táctil. Talvez por isso fale de Frida Kahlo, que viveu intensamente. "Não se consegue pensar nela sem pensar no tempo. É uma mulher que viveu a iludir o tempo. Parece que devia ter morrido quando teve o acidente, nunca se recompôs. Mas é alguém que consegue dominar o tempo e esticá-lo até ao impossível. É muito intensa, sabia qual era o valor de cada minuto." Também nós não esqueceremos aquela figura de "Aguantar" que se equilibrava em pratos de vidro.

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