Vasco Araújo, arqueólogo da memória

Os desenhos de Vasco Araújo, que tantas vezes extravasam a definição tradicional desta disciplina, são eles próprios um reflexo daquilo que o apaixona: os modos de construção da memória histórica.

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É como se estivéssemos a entrar dentro da casa de um coleccionador. Mas, por outro lado, escolher pôr quadros no chão é transformar os desenhos em esculturas Nuno Ferreira Santos
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Trata-se unicamente de desenho, e contudo algumas das séries que encontramos no percurso pelas salas da Fundação Carmona e Costa interrogam nitidamente os limites desta disciplina. Logo à partida, o título da exposição, Todas as Histórias, é também o título da única obra recente aqui mostrada, um vídeo onde a imagem reúne sequências filmadas na sala das cerâmicas gregas do British Museum; a câmara parte do pormenor — tantas vezes com cenas mitológicas ou referentes às grandes narrativas homéricas — para concluir com um grande plano  da sala do museu, onde objectos e vitrines se confundem num caleidoscópio de reflexos. O que vemos, parece interrogar a imagem? Na realidade, aquilo a que assistimos e ouvimos, na banda áudio, é a uma grande narrativa composta por excertos de todas as peças gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Sem títulos, sem atribuições de autor: “Era isso que me interessava”, diz Vasco Araújo. “Isto não são apenas as histórias dos gregos: é a nossa história, que dá forma ao mundo ocidental, e é a nossa história pessoal. Não há outra história senão esta.”

Quem diz história, diz narrativa e memória. Ou melhor, uma narrativa que serve de mnemónica a um passado que, através da construção histórica, se faz presente. Paralelamente às imagens, o artista tem desenvolvido uma relação constante com a verbalidade através da palavra escrita, e com a interrogação infindável dos fundamentos da civilização ocidental. A primeira série mostrada na exposição, O amante, retoma o título do livro O amante do vulcão, de Susan Sontag, e acopla frases retiradas deste texto com desenhos de mobiliário e objectos de arte realizados segundo a técnica habitual nos modelos para artesãos anteriores á revolução industrial. A montagem está excelente, tendo o artista e o curador, Pedro Faro, optado por pintarem o espaço de um castanho escuro, e encostado alguns quadros à parede. “É basicamente como se estivéssemos a entrar dentro da casa de um coleccionador. Mas, por outro lado, escolher pôr quadros no chão é transformar os desenhos em esculturas”, afirma o artista.

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A peça, que data de 2004, esteve na primeira exposição que Araújo realizou na Galeria Filomena Soares, e como o livro conta uma história complexa sobre a diferença entre o amor erótico e o amor do coleccionador pela sua colecção, o artista desenhou peças que reproduzem três lugares: a cadeira do coleccionador, o móvel sobre o qual está disposto o objecto e o próprio objecto. “Sontag acha que o tipo de desejo que se tem por um objecto não é o mesmo que se tem por uma pessoa.” Outras frases, nesta mesma série, vêm dos Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, e incidem sobre a definição de adorável. “O que significa adorável?”, pergunta Vasco Araújo? Provavelmente nunca se saberá.

Numa segunda sala, a série Gold family mostra desenhos feitos a dourado ou negro de objectos partidos e restaurados. O nome da série, que tem um prolongamento numa Green family no museu da fundação, no mesmo andar que a sala de exposições temporárias, refere-se obviamente às porcelanas chinesas comercializadas na Europa pela Companhia das Índias Ocidentais. Também aqui há uma história para contar. Vasco Araújo fez há anos uma residência no sítio arqueológico da casa de George Washington, onde esteve a ajudar a restaurar cerâmicas encontradas no local. “Quando cheguei lá”, explica, “a um armazém gigantesco, cheio de cacos — alguns já parcialmente reconstituídos —, fiquei absolutamente fascinado! Eram esculturas, quase abstractas, algumas delas, porque às vezes nem se percebia que objecto é que aquilo tinha sido.” A pergunta que lhe surgiu imediatamente foi sobre a identidade de quem teria usado aqueles objectos: “Quem é que viveu com aquilo? Aquilo é o resto de uma família, é o resto de uma pessoa. Não são os ossos; os ossos também desaparecem. São os cacos, os cacos é o que dura mais tempo”, antes de reflectir de novo sobre o coleccionador, o respigador, o históriador: “Quando guardamos alguma coisa não é só porque ela é feita de ouro, mas porque é um testemunho histórico, porque traduz a mentalidade do ser humano. Isto é no fundo o que os testemunhos são. Até o museu de história natural é sobre o ser humano. É sobre o modo como nós vemos a natureza, como nos relacionamos com a natureza.”

O artista é um coleccionador de imagens, mesmo que apenas mentais, duplicando aqui a atitude do destinatário final do seu trabalho, que é o coleccionador. Vasco Araújo quer mergulhar a fundo nas camadas sucessivas da memória, como um arqueólogo que realiza uma prospecção para chegar à camada mais profunda, aquela que marca a primeira ocupação do lugar. E mesmo aí terá sempre que ter um objecto para suportar a sua síntese histórica. Não lhe interessa o autor; interessa-lhe sim pesquisar os modos de resistência à passagem do tempo que o objecto possui: “Ir à procura da pessoa que fez a peça é fazer a biografia da peça, e por isso ela ficava logo ali esgotada. Imaginemos que a peça não se tinha partido. Uma peça partida tem uma aura que a inteira não tem. Porque é que a Vitória de Samotrácia é tão fascinante? Não tem braços nem cabeça, é um mistério extraordinário. Como é que seriam? Podemos lá projectar tudo.”

Nesse tudo, estamos nós próprios. Uma terceira série incluída na exposição, Ínsula, de 2010, mostra papéis recortados, segundo a forma de ilhas imaginárias encontradas em mapas medievais. Vasco Araújo conta que, nessa época se sabia por vezes que em algum lugar existiria uma ilha; mas como se desconhecia a sua forma, inventava-se — e inventava-se obviamente segundo um modelo já conhecido. “Gosto desta ideia do horror à mudança, de que a ilha é o paradigma máximo. Se quiseres mudar, tens que te atirar ao mar! A ilha é psicológica, claro”, explica.

No total da exposição, encontramos assim a referência e a citação a quatro tipos de desenho: o desenho técnico (O Amante), o desenho científico e prospectivo (Gold leaf), o desenho do puro delírio imaginativo (Ínsula) e o desenho de modelo em Todas as Histórias — visto que na Grécia clássica o conceito de originalidade é completamente desconhecido. De certa maneira, estas histórias de Vasco Araújo são também uma história do desenho, essa disciplina que é pensamento no espaço para todo o escultor digno desse nome. Vasco Araújo tem formação de escultor, o que decerto ajuda a compreender o seu fascíno pelo objecto de que toda a exposição dá também conta. Um objecto que nunca é simplesmente uma coisa tridimensional, mas um suporte da memória do mundo em que vivemos. Para ele, que é artista, importa o processo, tanto ou mais que o resultado final: “Gosto de explorar a ideia de como é que se trata a memória das coisas, como é que se regista”, conclui, nesta sua viagem pelos meandros da paixão pela arte.

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