O conflito por procuração na Venezuela

Com a intensificação da crise em 2019, a Venezuela arrisca-se a ser mais um Estado a engrossar o número dos conflitos por procuração, com consequências trágicas para a população: será devastada pelas atrocidades de ambas partes alimentadas por actores externos.

1. No complexo xadrez da política internacional, os pequenos e médios Estados normalmente não passam de peões. Podem ter mais ou menos valor, mais ou menos recursos, melhor ou pior localização estratégica, mas continuam a ser fundamentalmente dependentes de outros, sobretudo nos momentos mais críticos da sua existência. Como mostra Stephen Krasner em Sovereignty: Organized Hypocrisy (“Soberania: Um Hipocrisia Organizada”, Princeton University Press, 1999), a maioria dos Estados do mundo — que são pequenos e médios Estados — nunca foram tão soberanos como supostamente terão sido algures no passado, antes da actual globalização.

Stephen Krasner fala de uma hipocrisia organizada para designar uma norma internacional tão enraizada historicamente quanto violada: a da soberania de todos os Estados que integram o sistema internacional. Nesta óptica, a soberania, apesar de ser uma regra de Direito Internacional aplicável a todos os Estados, é, no mundo do poder, apenas um atributo das grandes potências.

2. Nos conflitos do sistema internacional é usual os Estados mais poderosos — as grandes potências — não se envolverem directamente num conflito político-militar, ou fazerem apenas um envolvimento mínimo no terreno, usando actores interpostos para o efeito. O maior desgaste material e danos humanos são, assim, sofridos por outros. É uma estratégia antiga conhecida como conflito ou guerra por procuração (proxy war).

Exemplos históricos não faltam, desde a Antiguidade até ao mundo contemporâneo. Hoje podemos ver isso na guerra da Síria, da Líbia ou no Leste da Ucrânia. 

Com a intensificação da crise em 2019, a Venezuela arrisca-se a ser mais um Estado a engrossar o número dos conflitos por procuração. Isso traz o risco adicional de transbordar para uma guerra por procuração, com consequências trágicas para a população do próprio país: será devastada pelas atrocidades de ambas partes alimentadas por actores externos.

3. A situação política na Venezuela está num profundo impasse. A oposição não mostra capacidade efectiva de convocar e organizar no terreno novas eleições presidenciais, livres, plurais e democráticas, ou de obrigar Nicolás Maduro a fazê-lo. Por sua vez, este também não consegue governar a Venezuela sem sofrer uma contestação permanente, próxima do patamar de rebelião, que lhe é feita por metade ou mais da população, a qual o vê como um governante ilegítimo, incapaz de prover bem-estar e cada vez mais ditatorial.

Os acontecimentos de 22 e 23 de Fevereiro foram inconclusivos. Juan Guaidó e a oposição a Nicolás Maduro ficaram aquém do seu principal objectivo de fazer passar os camiões com ajuda alimentar e medicamentos para a Venezuela.

A repressão nas fronteiras da Colômbia e do Brasil, feita pelo exército e forças paramilitares que continuam a suportar o Governo de Nicolás Maduro — apesar de algumas dezenas de militares terem desertado para o lado oposição —, provocou mortos e múltiplos feridos. A violência, mortes e camiões de ajuda humanitária queimados trazem uma adicional perda de legitimidade ao Governo venezuelano.

Mas isto não significa que a solução para o conflito irá ocorrer num prazo curto, nem que Nicolás Maduro esteja próximo de se afastar, ou ser afastado, do poder.

4. Internamente, Nicolás Maduro parece ter ainda o apoio das forças armadas e da população que mais terá beneficiado com o regime iniciado por Hugo Chávez. Isso pode ser explicado por razões ideológicas — para os seus apoiantes mais convictos, foram corrigidas as profundas injustiças da oligarquia governante do passado.

Mas há razões de puro clientelismo e de medo. Partes importantes da população dependem das benesses governamentais. Outros têm medo das represálias do Governo, ou de uma vingança da oposição, uma vez no poder. No caso das forças armadas, segundo relatos dos desertores, os maiores apoios ao Governo estão nas cúpulas militares, privilegiadas pelo regime. Nos níveis hierárquicos mais baixos existirá descontentamento devido às privações que também estão a sofrer.

A ser assim, o regime poderá desagregar-se ao longo dos próximos tempos, por perda de apoios internos na institucional militar. Resta saber se a situação no terreno é mesmo essa, pois não há possibilidade de confirmar tais dados por fontes imparciais.

5. As partes que se confrontam internamente na Venezuela estão, cada vez mais, dependentes de potências externas. A comunidade internacional dividiu-se quanto à manutenção do apoio — ou, pelo menos, a manutenção do reconhecimento — ao Governo de Nicolás Maduro. Entre os seus apoios mais fortes estão a Rússia e a China. No caso de Juan Guaidó, o seu reconhecimento como presidente interino foi feito pelos EUA, pela maioria dos Estados das Américas e pela generalidade da União Europeia.

Como é habitual nos conflitos internacionais, há vários graus de apoio e de oposição externa a Nicolás Maduro. Para alguns, a situação faz lembrar a de Cuba nos tempos da Guerra-Fria. Há aspectos que parecem bastante similares. Existe uma disputa ideológica entre socialismo revolucionário bolivariano e democracia capitalista liberal, que faz lembrar a competição ideológica da Guerra-Fria. Há um posicionamento cada vez mais assertivo de grandes potências mundiais a favor (Rússia) e contra (EUA) o governo de Nicolás Maduro. Há também uma guerra de propaganda em curso: a Venezuela como farol revolucionário e progressista na vanguarda da classe trabalhadora versus a Venezuela como desastre económico e social onde os ideais socialistas-comunistas levam à miséria e à opressão.

6. A comparação com a Guerra Fria é equívoca. O mundo não está dividido entre a esfera de influência dos EUA e da União Soviética / Rússia. A China — hoje a segunda potência mundial —, apesar de normalmente alinhar com as posições russas, não está interessada numa política externa de expansão ideológica.

Pelo contrário, vê nela a principal causa de colapso da União Soviética pela grande coligação que gerou contra esta última e acabou por fazê-la ruir. Ao mesmo tempo, de forma pragmática, descortina vantagens no actual sistema capitalista internacional enquanto maior exportador mundial.

Neste aspecto, Nicolás Maduro parece mais uma versão grotesca de Dom Quixote de la Mancha, o personagem criado pelo génio literário de Miguel de Cervantes. Tal como Dom Quixote vivia na Idade Média depois de esta acabar, Nicolás Maduro parece viver na Guerra-Fria e na era planificada de direcção central.

Mas a Rússia e a China, os seus maiores apoiantes externos, têm hoje as suas próprias formas de capitalismo autoritário. Não têm qualquer interesse no modelo de socialismo revolucionário bolivariano, a não ser, claro, na medida em que é útil para os seus próprios objectivos de poder e influência na América Latina.

7. Apesar da sua retórica soberanista, Nicolás Maduro está sob uma quase total dependência externa. Mas Juan Guaidó e a oposição venezuelana podem estar a cair em similar problema, ao tornarem-se demasiado dependentes do exterior. Uma dependência dos EUA, seja do Governo de Donald Trump ou de Marco Rubio, um senador norte-americano de ascendência cubana, não é a melhor opção para a causa democrática da oposição.

Os protagonistas desta linha dura norte-americana gostam de dizer que todas as opções estão em cima da mesa, incluindo a militar. Provavelmente, é uma afirmação mais no domínio da guerra psicológica, mas essa abordagem serve os intuitos de Nicolás Maduro. Permite dar credibilidade à ideia de cerco da Venezuela pelos seus inimigos e agitar o sentimento nacionalista.

A degradação das relações com a Colômbia também lhe é conveniente. Não é apenas uma questão de rivalidade ideológica e de alianças internacionais antagónicas dos dois países. Há uma rivalidade enraizada que vem desde os primórdios da fundação de ambos os Estados, após o fim do império espanhol na América latina no século XIX, sob a acção de Simón Bolívar.

Entre a Venezuela e a Colômbia persistem disputas territoriais na fronteira marítima. Há tensões de um passado recente ligadas às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que utilizaram território venezuelano como base.

Pela degradação económica, social e política interna, Nicolás Maduro perdeu a relativa autonomia estratégica de Hugo Chávez nos tempos do petróleo a preço elevado. É hoje instrumento de um conflito, cada vez mais por procuração, das grandes potências que o apoiam, a Rússia e a China. Mas nos conflitos por procuração as grandes potências são espectadores da tragédia humana de outros.

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