Maduro é um democrata? 25 razões, uma só resposta

É fascinante ler a defesa de Nicolás Maduro em nome de ortodoxas palas ideológicas. Pensei escrever um texto sobre isso. No fim, conclui que era mais útil fazer uma cronologia.

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Como tantos leitores parecem ter dúvidas sobre a questão, proponho uma lista para consulta rápida.

1 Março 2016: dois meses após a tomada de posse da nova Assembleia Nacional, a primeira em 16 anos na qual a oposição a Maduro tem a maioria dos votos, o Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela aprova uma lei que retira poderes legislativos à Assembleia Nacional.

29 Março 2017: um ano depois, o Supremo Tribunal de Justiça assume as competências da Assembleia Nacional. Dois dias depois, perante o escândalo internacional, volta atrás.

8 Abril 2017: Henrique Capriles, governador de Miranda e ex-candidato presidencial do Primeiro Justiça, da oposição, é legalmente impedido de exercer cargos públicos até 2032.

1 Maio 2017: Maduro anuncia que vai convocar eleições para uma Assembleia Constituinte, pois é necessário “refundar o Estado”.

30 Julho 2017: é eleita uma Assembleia Constituinte com regras eleitorais novas: os candidatos passam a representar territórios e sectores sociais e não podem pertencer a partidos políticos.

2 Agosto 2017: numa conferência de imprensa em Londres, o fundador e CEO da SmartMatic, o engenheiro venezuelano Antonio Mugica, diz que os números de eleitores que votaram para a Constituinte foram “manipulados” e que foram acrescentados “pelo menos um milhão de votos”. O sistema electrónico da SmartMatics usado na Venezuela “está desenhado para que, em caso de manipulação, a sua detecção seja imediata e muito fácil de identificar”. O engenheiro lembra que a SmartMatic foi usada nas eleições da Venezuela entre 2004 e 2015, incluindo a eleição de Maduro por uma pequena margem em 2013 e a vitória da oposição na Assembleia Nacional em 2015. No mesmo dia, a procuradora-geral da República, Luisa Ortega, abre uma investigação às alegadas ilegalidades.

5 Agosto 2017: no seu primeiro de dia trabalho, a Assembleia Constituinte anuncia a destituição sumária de Luisa Ortega. No cargo desde 2007, Ortega fica também impossibilitada de voltar a exercer um cargo público.

8 Agosto 2017: nasce o Grupo de Lima para “explorar formas de contribuir para a restauração da democracia na Venezuela”. O grupo inclui a Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Perú. O Brasil estava a dois anos de eleger Jair Bolsonaro. O texto inaugural condena “a ruptura da ordem democrática na Venezuela”, “não reconhece a Assembleia Nacional Constituinte nem os actos que emanam dela” e, no ponto 7, condena “a violação sistemática dos direitos humanos e liberdades fundamentais, a repressão e a perseguição política, a existência de presos políticos e a falta de eleições livres sob observação internacional independente”.

18 Agosto 2017: a nova Assembleia Constituinte assume os poderes legislativos atribuídos à Assembleia Nacional.

18 Agosto 2017: no mesmo dia, Luisa Ortega foge numa lancha rápida para Aruba, uma ilha sob administração holandesa, ao largo da Venezuela, e daí apanha um avião para a Colômbia. À chegada, diz recear pela sua vida.

15 Outubro 2017: há eleições para governadores. A Mesa de la Unidad Democrática (MUD), que reúne movimentos da oposição, não reconhece os resultados. Segundo os dados oficiais, o partido de Maduro ganha em 17 dos 23 estados. A oposição denuncia irregularidades: fecho súbito de mesas de voto; corte de electricidade que impede o voto electrónico; atrasos no funcionamento do sistema de voto; presença de “simpatizantes” de Maduro armados à porta das mesas de voto; fecho de urnas onde a oposição é muito forte; reorganização pela Comissão Nacional de Eleições de 274 centros de recenseamento, afectando 700 mil eleitores, pouco antes das eleições.

30 Outubro 2017: os três principais partidos da oposição dizem que vão boicotar as eleições municipais.

11 Novembro 2017: Maduro anuncia que as autárquicas serão a 10 de Dezembro, um mês depois.

11 Dezembro 2017: Maduro anuncia que os três principais partidos da oposição não serão autorizados a participar nas próximas presidenciais. Os partidos Voluntad Popular, Acción Democrática e Primero Justicia são impedidos de apresentar candidatos.

26 Janeiro 2018: o Supremo Tribunal proíbe a oposição de se apresentar às presidenciais numa aliança.

7 Fevereiro 2018: Maduro convoca as presidenciais para 22 de Abril, dez semanas depois.

22 Fevereiro 2018: A Amnistia Internacional resume assim a Venezuela no seu relatório anual: “Uma Assembleia Constituinte foi eleita sem a participação da oposição. A procuradora-geral foi demitida em circunstâncias irregulares. As forças de segurança continuaram a praticar um uso excessivo de força para dispersar os protestos. Centenas de pessoas foram presas arbitrariamente. Há muitas denúncias de tortura e outros maus tratos, incluindo violência sexual contra manifestantes. O sistema judicial continua a ser usado para silenciar dissidentes, incluindo o uso de jurisdição militar para acusar civis. Os defensores dos direitos humanos são assediados, intimidados e objecto de raides.” O relatório continua e diz que 50 estações de rádio foram fechadas pela Comissão Nacional de Telecomunicações e que o Governo deu ordens para retirar da operação de televisão por cabo alguns canais estrangeiros, como a CNN, a RCN e a CARACOL. Nesta altura, há 120 pessoas mortas nas manifestações e 726 civis acusados por crimes militares em tribunais militares.

23 Fevereiro 2018: a Organização de Estados Americanos (OEA) aprova uma resolução que pede a Maduro o cancelamento das presidenciais anunciadas para Abril. Diz que essa data “impossibilita a realização de eleições democráticas, transparentes e credíveis em conformidade com as normas internacionais” e “exorta o Governo a reconsiderar a convocação prematura de presidenciais”. Há 19 votos a favor (Bahamas, Santa Lúcia, Argentina, Barbados, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Estados Unidos, Guatemala, Guiana, Honduras, Panamá, Jamaica, México, Paraguai, Uruguai e Peru), cinco contra (Venezuela, Bolívia, Suriname, Dominica e San Vicente e Granadinas) e oito abstenções (Equador, Nicarágua, El Salvador, Haiti, República Dominicana, Belize, São Cristóvão e Neves, e Trinidad e Tobago).

14 Maio 2018: o Grupo de Lima mais a Espanha e os EUA apelam a que as presidenciais, adiadas para 20 de Maio, sejam canceladas. Argumentam que foram “convocadas de forma ilegítima”, que não terão observadores internacionais porque à partida não são consideradas sérias, livres, justas, transparentes e democráticas, e escrevem: “As eleições previstas para a Venezuela não contam com a participação da oposição, não contam com observação internacional, nem oferecem garantias de um processo democrático, livre e justo.”

20 Maio 2018: Os dois adversários nas presidenciais de 20 de Maio, Henri Falcón, militar, advogado e dissidente do chavismo desde 2010, e o pastor evangélico Javier Bertucci denunciaram fraude eleitoral. Dão como exemplo os cinco mil “pontos vermelhos”, espécie de escritórios móveis do Partido Socialista Unido de Venezuela, de Maduro, instalados ao pé das assembleias de voto ou mesmo dentro delas. Que funcionaram assim: quando os eleitores chegavam para votar, mostravam o seu “cartão da pátria” a um funcionário do “ponto vermelho” de modo a serem informados dos benefícios sociais que teriam a receber se enviassem uma mensagem para um número de telefone que lhes era dado ali. O prémio podia chegar aos dez dólares. Receberiam o dinheiro se se registassem depois de votarem. O salário mínimo é hoje menos de 40 dólares. Falcón disse que recebeu pelo menos 300 denúncias de pagamentos deste tipo, alguns dos quais dentro da própria assembleia de voto. O pastor Bertucci disse ter recebido 300 queixas referentes a esta espécie de compra de votos e ao voto assistido, em que eleitores sem deficiências nem dificuldade de mobilidade foram acompanhados até à urna para serem ajudados a votar.

21 Maio 2018: Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lúcia anunciam que não reconhecem o resultado das eleições. No mesmo dia, o Grupo de Lima (a lista anterior menos a Guiana e Santa Lúcia) emite um comunicado a dizer que não reconhece “a legitimidade do processo eleitoral por não estar em conformidade com os padrões internacionais de um processo democrático, livre, justo e transparente”.

26 Dezembro 2018: Alfredo Romero, director executivo da ONG venezuelana Foro Penal, diz que há 278 presos políticos no país. A OEA recebe os dados para verificação independente e certifica a lista.

1 Janeiro 2019: juiz Christian Zerpa, membro do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela, foge para os EUA e dá uma entrevista à rádio Voz da América. Pede desculpa ao povo venezuelano por não se ter oposto a Maduro e por ter votado a favor da retirada de poderes à Assembleia Nacional.

5 Fevereiro 2019: Alfredo Romero, do Foro Penal, diz que presos políticos aumentaram para 966.

Hoje: a Assembleia Constituinte existe há um ano e meio e ainda não há sinais de uma nova Constituição. O país tem um precedente: em 1999 foi eleita uma Assembleia Constituinte que, como o nome indica, fez uma nova Constituição. Essa assembleia transitória durou três meses e meio, a seguir foi extinta, a nova Constituição foi submetida a referendo e, a seguir, a Assembleia Nacional retomou a actividade normal.

Não, Nicolás Maduro não é um democrata.

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