Como o chavismo perdeu o controlo da derrocada que o levou ao poder

A dependência do petróleo transformou a Venezuela num país de ciclos. Chávez aproveitou a implosão do sistema bipartidário para contrariar tendência, mas apenas conseguiu acelerá-la. E Maduro esticou-a até um ponto de não retorno.

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Hugo Chávez morreu de cancro em 2013 Gerardo Garcia/Reuters

Vinte anos depois da inesperada eleição presidencial de Hugo Chávez, a Venezuela está destroçada. A sua galinha dos ovos de ouro, a indústria petrolífera, está a produzir metade do que produzia no início da década, há falta de medicamentos e de alimentos nas prateleiras dos mercados e praças, a taxa de homicídio nunca foi tão elevada, o índice de pessoas no limiar da pobreza ultrapassa os 80%, a inflação bate recordes diariamente e é já rotina haver filas intermináveis junto aos postos fronteiriços colombianos e brasileiros de gente que quer fugir. E no meio do colapso, dois Presidentes e dois Parlamentos travam desde o início do ano uma batalha pela legitimidade, sem fim à vista. Que rachou o país (e o mundo) ao meio.

No tradicional jogo da atribuição de culpas pela catástrofe não faltam argumentos nos dois principais lados da barricada: asfixia económica internacional ostensiva e propositada, para uns, ineficácia irremediável do modelo socialista, para outros.

Um terceiro grupo olhará, no entanto, para o que era a Venezuela antes de o chavismo ter irrompido pelo Palácio de Miraflores, em Caracas, em 1999, e identificará uma série de desafios que encontram paralelo na Venezuela dos dias de hoje – desde a corrupção nas elites políticas até à repressão de protestos populares e à inflação descontrolada.

Foi, aliás, a partir de uma crise social, económica e política brutal no país, em meados dos anos 80 do século XX, que o movimento bolivariano começou a ganhar apoio popular para, uma década mais tarde – e depois de um golpe de Estado falhado –, aproveitar a implosão do sistema partidário venezuelano, conquistar o poder e comprometer-se a virar do avesso o modelo político do país.

Será assim tão diferente a Venezuela de 2019 com a Venezuela de 1989? E qual a verdadeira contribuição do chavismo para o statu quo? Andrés Malamud, politólogo argentino e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, não tem dúvidas. “O chavismo foi uma resposta a um problema pré-existente”, assume ao PÚBLICO, para depois atalhar: “Mas foi uma resposta que falhou, que ampliou o problema e que criou outros”.

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Carlos Andres Perez Carlos Hernandez/Rueters

Da “Venezuela Saudita” ao “Caracazo”

Como qualquer outro Estado com largas reservas de petróleo, a Venezuela beneficiou e, muito, do aumento do preço do barril na sequência do choque petrolífero de 1973, e durante os anos seguintes desenvolveu e consolidou um estatuto de produtor e exportador de excelência do “ouro negro”, tendo os Estados Unidos como cliente íntimo.

Sob a liderança de Carlos Andrés Pérez, explica Malamud, Caracas “construiu um Estado de bem-estar social bastante desenvolvido e converteu-se num país de acolhimento para muitos latino-americanos e não só”. Totalmente alicerçado nos dividendos da exploração petrolífera, nacionalizada pelo Presidente, e na solidez de um sistema político, no qual a Acção Democrática (sociais-democratas) – de Pérez – e o COPEI (socialistas cristãos) alternavam a presidência entre si.

Embriagada pelos lucros do negócio, a “Venezuela Saudita”, como era conhecida na época, acabou por tolerar uma cultura de desperdício e de consumo excessivo, vulnerável à corrupção e ao endividamento externo, como formas de manutenção e promoção de uma prosperidade que se apregoava de infinita.

Só que quando, na década seguinte, o preço do barril do petróleo começou a baixar, abriram-se as primeiras fendas de um sistema político e económico auspicioso, mas profundamente desequilibrado. E o descontentamento social tornou-se insuportável.

Ao regressar ao poder para um segundo mandato, em 1989, Pérez prometeu recolocar a “Grande Venezuela” no mapa. Ao invés disso, acatou as imposições neoliberais do Fundo Monetário Internacional e aprovou um duríssimo pacote de medidas de austeridade, que foi entendido pela população como uma autêntica “traição”.

O aumento vertiginoso do preço da gasolina e dos transportes e os cortes sociais motivaram protestos em todo o país e deram azo a um dos episódios mais negros da História venezuelana: o “Caracazo”. No dia 27 de Fevereiro de 1989, milhares de pessoas das classes mais desfavorecidas desceram das favelas até ao centro capital para protestar contra Pérez e foram fortemente reprimidas pelas autoridades.

“Desde 1958 que o país era governado por uma democracia pactuada entre dois partidos que procuraram incorporar, excluir ou reprimir visões opositoras de forma totalmente intencional”, diz ao PÚBLICO Miguel Tinker Salas, professor de História da América Latina no Pomona College, em Claremont, no estado norte-americano da Califórnia.

“O país tinha uma fonte abundante de petróleo, mas nem todos os sectores da população beneficiavam dela. E o ‘Caracazo’ expôs as profundas fissuras sociais, classistas e raciais que marcaram toda a História da Venezuela. O mito da Venezuela enquanto país excepcional encaminhou-se ali para o seu fim”, acrescenta o académico.

O número oficial de mortos ultrapassou as três centenas – havendo, porém, quem aponte para três milhares – e abriu-se uma ferida que nem Pérez nem os presidentes seguintes conseguiram cicatrizar. Bem pelo contrário.

Chávez, às custas de Caldera

É neste contexto de intranquilidade social que aparece Hugo Chávez. Tenente-coronel do Movimento Militar Bolivariano – uma facção paramilitar percursora do marxismo latino-americano de manual da Guerra Fria, anti-imperialista, libertador e aspirante a um novo socialismo –, liderou em 1992 duas tentativas de golpe de Estado, mas fracassa e foi detido. Não sem antes garantir: “Não conseguimos controlar o poder... por agora”.

O segundo (e vitorioso) assalto de Chávez ao poder chegou através do voto, em 1998. Para tal, muito beneficiou da derrocada final do sistema político bipartidário da Venezuela. Que, ao contrário do que se possa pensar, não teve o comandante como protagonista, mas Rafael Caldera.

Tal como Pérez – destituído pelo Supremo Tribunal devido à utilização indevida de dinheiros públicos –, Caldera também já tinha sido Presidente (1969-1974, pelo COPEI). Seguindo a tradição de recandidaturas presidenciais da América Latina, regressou ao poder à frente de um outro novo partido – Convergência (conservador), composto por dissidentes do COPEI – em 1994.

Somadas à implementação das políticas de austeridade de Pérez e à deterioração da economia venezuelana e do clima de descontentamento social, a cisão do COPEI e a perda de credibilidade da Acção Democrática fizeram estremecer um regime político de décadas. E quando Caldera ofereceu amnistia a Chávez e a outros revoltosos, o sistema já estava caduco, abrindo caminho para a candidatura presidencial do ex-militar. “Não foi Chávez que o quebrou, o sistema estava partido”, afiança Malamud.

De “aberração” a “herói”

A candidatura presidencial de Hugo Chávez foi um sucesso. Menosprezado pelo establishment político venezuelano e alimentado pela capacidade de mobilização de um espectro alargado da população, de diferentes classes e contextos económicos, conquistou o Palácio de Miraflores pelo voto, prometeu uma “transformação estrutural” na Venezuela e jurou com a mão pousada numa “Constituição moribunda”.

“A oposição conservadora venezuelana foi incapaz de reconhecer as tais fissuras sociais profundas e insistiu durante muito tempo que Chávez era uma aberração, um produto de uma qualquer conspiração internacional. Ainda hoje o faz”, insiste Salas.

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Funeral de Hugo Chávez Marco Bello/Reuters

“Para muitos venezuelanos, Chávez foi inspirador, quando fez crer que era possível partilhar os lucros de petróleo com a população e, ao mesmo tempo, punir os políticos corruptos e incompetentes que deles beneficiavam exclusivamente”, acrescenta ao PÚBLICO Michael Coppedge, investigador de Política Comparada na universidade norte-americana de Notre Dame (Indiana). “Tornou-se um herói para muita gente, incluindo muitos venezuelanos da classe média”.

Os primeiros anos do chavismo foram venturosos. A conversão da Constituição e do sistema político num modelo socialista, com uma forte componente ideológica, personalista e anti-colonialista – inspirada na figura do lendário libertador da América Latina e ex-Presidente da Venezuela, Simón Bolívar –, foi acompanhada por novo aumento do preço do barril do petróleo que, tal como no primeiro mandato de Pérez, deu fôlego e margem de manobra ao regime bolivariano para lançar uma série de reformas económicas e sociais.

Ultrapassado um golpe de Estado que não durou mais de um dia, em 2002, e um referendo que decidia a permanência ou destituição do Presidente, em 2004, Chávez e o seu séquito tomaram conta do aparelho do Estado, inclinaram o terreno eleitoral e judicial a favor do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e ostentaram o petróleo como bandeira do chavismo e de um “socialismo para o século XXI”.

O desemprego reduziu e foram feitos investimentos avultados em programas de saúde, literacia e erradicação da pobreza – que atingiu níveis mínimos entre 2006 e 2012. Houve lugar a uma profunda reforma agrária, foram levadas a cabo expropriações e nacionalizações várias e a oposição perdeu terreno. Tanto como a aprovação, em referendo, da abolição do limite de mandatos de todos os cargos políticos, como o início de uma vaga de perseguição e detenção de diversos opositores ao chavismo.

A “verdadeira ditadura”

Mas as reformas de Hugo Chávez aumentaram ainda mais dependência de um Estado incapaz de diversificar a sua economia nas receitas da exportação de petróleo. “A Venezuela não produz mais nada”, lamenta Malamud. E numa economia submissa às oscilações do mercado, qualquer descida do preço do barril tem repercussões imediatas para a estabilidade do sistema. Como já tinha acontecido nos anos 80, foi o que aconteceu pouco antes de o carismático Presidente morrer de cancro, em 2013.

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Nicolás Maduro Carlos Garcia Rawlins/Reuters

“O chavismo transformou a Venezuela, na medida em que os que eram privilegiados foram afastados e os marginalizados beneficiaram da graça do Governo. Houve anos de crescimento económico intenso e progressos em variadíssimos indicadores sociais”, considera Coppedge. “Mas Chávez teve a sorte de ter um preço do petróleo elevado enquanto viveu. Porque o modelo não era sustentável quando o petróleo caiu. E [Nicolás] Maduro pagou o preço de todas as suas más decisões”.

Para explicar o falhanço da solução chavista, Salas acrescenta à dependência crónica no sector petrolífero e à falta de investimento noutros sectores, a “incompetência e o improviso” dos actuais dirigentes e a sua “incapacidade ou falta de vontade para lidar com a corrupção”. E não deixa de fora os efeitos das sanções dos EUA.

“A partir de 2015, com [Barack] Obama, e intensificadas com [Donald] Trump, as sanções tornaram impossível a renegociação da dívida venezuelana e modernização da sua indústria petrolífera. Limitaram a economia da Venezuela e contribuíram para a degradação das condições da população comum”, atira o professor universitário.

Sobre Washington – o “inimigo imperialista” do socialismo bolivariano – Andrés Malamud destaca ainda a auto-suficiência norte-americana em gás natural e a “quase auto-suficiência” em petróleo: “Já não precisam da Venezuela, que tem um petróleo caro, difícil de extrair e de refinar”. E acrescenta à equação pessimista a evolução do regime venezuelano, de um sistema “híbrido”, com Chávez, para uma “verdadeira ditadura”, com Maduro.

Face a tamanhas adversidades, esperar por uma subida do preço do petróleo que possa recomeçar um ciclo económico favorável é, para o investigador do ICS, um “sonho impossível” de Maduro. “A situação é, nos dias de hoje, inimaginavelmente pior. É um país devastado. São precisas centenas de milhões de euros ou de dólares para o reconstruir”.

Coppedge afina pelo mesmo diapasão. Porque mesmo assumindo que a crise actual da Venezuela tem “elementos similares” aos que guiaram o chavismo ao poder, não tem dúvidas sobre qual das situações é mais grave: “É a diferença entre uma inflação de 100% e uma de 10,000,000%. Entre ter de importar vários produtos para revenda e não ter sequer produtos nas prateleiras. Ou entre três dias de repressão violenta e anos de violência, encarceramento e constante intimidação aos críticos do Governo”.

O diagnóstico é, por isso, igualmente pessimista: “O chavismo não só não resolveu os problemas da Venezuela como os agravou”. Com apenas 20% de aprovação, de acordo com um estudo de Novembro da Datanálisis, Nicolás Maduro corre, pois, o risco de ficar soterrado pela derrocada de pedras que o seu antecessor soube escalar para chegar ao poder. Juan Guaidó está à espreita.

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