Negócios interrompidos com o inimigo: o petróleo da Venezuela e as sanções dos EUA

Se a Venezuela não tiver divisas aceites nos mercados internacionais, vai ter de hipotecar, ainda mais, os seus activos. O aumento do sofrimento da população é garantido, o fim governo de Nicolás Maduro é incerto.

1. Uma das maiores debilidades da Venezuela, país com as maiores reservas mundiais de petróleo, está, paradoxalmente, nas receitas que esse valioso recurso energético (não) gera. Importa olhar para o destino das suas exportações petrolíferas para perceber o problema. Estas têm sobretudo os seguintes destinatários: China, Índia, EUA, América Central (Nicarágua, El Salvador, etc.) e Caraíbas/Antilhas (particularmente Cuba).

No caso destes últimos países, o retorno financeiro é relativamente baixo. Para além de serem pequenas economias têm beneficiado de condições favoráveis de pagamento, com preços preferenciais, através do Petrocaribe criado por Hugo Chávez em 2005.

No caso da China, a segunda maior economia mundial e um grande importador — que tem na Venezuela o seu maior fornecedor das Américas —, a exportação acaba por não gerar, na prática, receitas correntes em divisas. Isto porque as exportações de petróleo para esse país estão afectas ao serviço da dívida venezuelana à China. Os chineses são os seus maiores credores, tendo, na última década, emprestado à Venezuela cerca de 60 mil milhões de dólares. O pagamento dessa dívida é feito em bens — entenda-se, fundamentalmente petróleo — e cerca de 1/3 ainda está por efectuar.

2. A Índia, outra grande economia emergente e com necessidades crescentes de petróleo, poderia ser a alternativa em termos de receitas em divisas para a Venezuela. Mas as importações da Índia estão ligadas às sanções ao Irão — fornecedor tradicional da Índia, geograficamente muito mais próximo desta. Após 2015, com o acordo sobre o programa nuclear iraniano e a progressiva redução das sanções, o interesse da Índia pelo petróleo venezuelano diminuiu. Poderá, agora, com o abandono dos EUA desse acordo, voltar a ressurgir. Mas a Índia tem também a alternativa do Iraque e outras no Médio Oriente.

Fica então o caso dos EUA — a maior economia mundial e muito próxima geograficamente da Venezuela —, país para o qual são ultimamente exportados um pouco mais de 500.000 barris diários de petróleo. Este valor representa cerca de 6% das importações totais de petróleo dos norte-americanos. É relevante, mas, ao mesmo tempo, está muito longe do valor dos finais dos anos 1990, quando a Venezuela era o principal fornecedor externo.

No caso da economia da Venezuela, o impacto é bem maior. O mercado dos EUA continua a ser (muito) importante, desde logo por razões financeiras (e também técnicas, ligadas à refinação do seu petróleo pesado). Em termos financeiros, paga de imediato as suas exportações na principal divisa mundial ­­— ­o dólar ­—, o que permite gerar liquidez. A par dos EUA, só as vendas à Índia geram, no imediato, receitas significativas de divisas.

3. O anúncio efectuado a 29/01/2019 pelos EUA de aplicaram sanções financeiras à PDVSA, a empresa estatal venezuelana, é uma medida que vai afectar duramente o negócio petrolífero tal como decorria entre ambos os países. Ao abrigo dessas sanções, as empresas norte-americanas que continuarem a comprar petróleo à PDVSAterão de depositar o pagamento numa conta não acessível ao governo de Nicolás Maduro. (Ver “Treasury sanctions Venezuela state-owned oil firm in bid to transfer control to Maduro opposition” in CNBC, 28/01/2019).

Previsivelmente, as sanções terão impacto nos mercados petrolíferos — provocando alguma subida no preço do petróleo —, mas as consequências não são da mesma dimensão para os diferentes lados envolvidos. A mais afectada será a Citgo com sede Houston, Texas, particularmente vocacionada para o petróleo pesado venezuelano e a principal empresa importadora de petróleo desse país. (A Citgo é detida pelaPDVSA​ e presidida por Asdrúbal Chávez, primo de Hugo Chávez). Ficou impedida de transferir o retorno financeiro das suas operações de refinação para a PDVSA na Venezuela.

A partir de agora essas receitas terão de ser depositadas numa conta nos EUA, à qual o governo de Nicolás Maduro não terá acesso. Este perderá, assim, a maioria das suas receitas em dólares e o acesso ao mercado de capitais dos EUA para refinanciamento da sua dívida. Perderá ainda uma importante capacidade técnica de refinação do seu petróleo pesado.

As sanções terão igualmente impacto no sector petrolífero norte-americano (e nos consumidores). Para além da Citgo, há nos EUA outras empresas / refinarias que usam quantidades significativas de petróleo pesado importado da Venezuela — estão especializadas no mesmo — e sofrerão prejuízos: a Valero Energy Corporation, a Phillips 66 e a Chevron. Era aí que estavam as maiores pressões internas sobre o governo de Donald Trump para que o negócio do petróleo entre os dois países não fosse interrompido.

4. Os negócios como o inimigo que até agora decorriam, tinham ainda contornos mais estranhos e inesperados que os já descritos. A Citgo que depende, directa ou indirectamente, do governo de Nicolás Maduro — como já explicado, é pertença da petrolífera estatal PDVSA ­— em 2017 fez um substancial donativo para o comité inaugural da presidência de Donald Trump: 500 mil dólares. O valor terá sido até superior ao de outras multinacionais como a Pepsi ou a Walmart. (ver “Socialist Venezuela chipped in $500,000 to Trump's inauguration” in Guardian, 20/04/2017).

No passado, Hugo Chávez também já tinha usado a Citgo como arma política nos EUA, mas de uma outra forma. Associando-se à Citizens Energy Corporation, uma organização sem fins lucrativos ligada à família Kennedy, contribuiu financeiramente para um programa de fornecimento de gás e óleo para aquecimento, destinado às famílias mais pobres e idosos da costa Leste — a campanha Citizens’ 877-JOE-4-OIL. (Publicitou, assim, internacionalmente, a Venezuela e a PDVSA como activistas no combate à pobreza nos EUA.) Mas o caso adquiriu agora um novo rumo com as ramificações à Rússia.

O donativo ao “imperador” Trump surgiu pouco tempo depois de a empresa estatal de petróleo da Rússia — a Rosneft, uma das maiores petrolíferas mundiais —, ter ficado com uma hipoteca sobre 49,9% da Citgo, para garantia do seu empréstimo à PDVSA de 1,5 mil milhões de dólares. A questão adquire, por isso, contornos político-estratégicos. Uma interrogação fica em aberto: se o empréstimo não for cumprido, ficará a Rosneft/Rússia, com um posicionamento estratégico na indústria petrolífera dos EUA?

5. Entre economias globalizadas, necessariamente interdependentes, tudo isto poderia ser visto com alguma naturalidade. Mas a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro contesta a globalização capitalista e pretendeu liderar alternativas bem-sucedidas a esta. Uma imagem simbólica forte do regime é a sua política patriótica e soberanista. Mas, na realidade, a soberania da Venezuela, pelo menos a económica, já foi colocada em causa pelo seu próprio governo.

Como referido, uma parte da produção actual e futura do seu mais valioso recurso — o petróleo — está vendida à China, país face ao qual tem uma enorme dívida. Ao mesmo tempo, muitos dos seus activos empresariais mais importantes — o caso da Citgo detida pela PDVSA é bem exemplificativo —, estão hipotecados a outras potências estrangeiras, neste caso à Rússia.

É difícil ver nisto uma afirmação de soberania (na realidade é uma alienação desta), mesmo que sejam negócios com países amigos. Os seus credores internacionais, seja a China, a Rússia ou outro qualquer país, mesmo que favoráveis ao regime, não vão deixar de querer receber os seus créditos. (Ver “PDVSA Bewilders Bond Analysts by Making $949 Million Payment” in Bloomberg, 30/10/2018).

Se a Venezuela não tiver divisas aceites nos mercados internacionais como meio de pagamento — dólares, euros etc. —, vai ter de hipotecar, ainda mais, os seus activos, e estes escasseiam assustadoramente. É um contraste flagrante com a retórica contra o “império”, mas fazer negócios com o inimigo era uma questão de sobrevivência.

Resta saber as consequências últimas da interrupção agora provocada pelas sanções. O aumento do sofrimento da população é garantido, o fim governo de Nicolás Maduro é incerto.

Post scriptum: este artigo é a segunda parte de “Pacto com o diabo: o petróleo da Venezuela e os EUA” publicado no Público online de 27/01/2019

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